terça-feira, 31 de agosto de 2010

A Grandeza de Adolf Hitler


Na biografia de Hitler escrita por Joachim Fest há um fato contundente: pelas 855 páginas de texto, dificilmente se acha alguma revelação pessoal sobre a persona in foco. O que se tem é uma minuciosa análise cronológica e histórica dos 56 anos de Hitler, desde seu nascimento em Branau, até seu suicídio no Bunker da Chancelaria do Reich, em Berlim. O máximo que um jornalista com o empenho de Fest pôde fazer, numa pesquisa que se iniciou menos de duas décadas após a rendição incondicional da Alemanha e o desaparecimento de seu herói derrotado, foi compilar as demonstrações raras mas já conhecidas em público do enternecimento de Hitler pelas músicas de Wagner e sua afeição aos cães. Mais do que isso, apenas no final dos anos 1990 apareceriam algumas fotos ultra-secretas de um pré-ditador entregue a poses florais, numa tarde de sol primaveril que impossibilitaria prever que seu simpático modelo seria responsável pelo maior processo de auto-desencanto da humanidade. O Hitler de Fest é um homem que já nasceu com um propósito, moldou toda sua vida para a efetivação desse propósito, cortou o frívolo e o subjetivo até se resumir por completo a uma máquina obsessiva que não se importava com a dor, o sofrimento, a alegria ou a vida, sua ou a alheia: o propósito de elevar a Alemanha à condição mitológica de supremacia espiritual dominante sobre todos os outros povos. A vaidade pragmática de Hitler, firmemente reduzida a uma estampa de assepcia funcional para ser mostrada às massas, leva a crer que ter sido ele o escolhido pela História para encabeçar esse propósito era apenas um acaso para o qual ele se preparara para o momento previsível do seu sacrifício absoluto. E não é difícil ao leitor concordar que o Hitler de Fest está um milímetro próximo de quem Hitler foi realmente.

Fest não esconde sua admiração por Hitler. Há um tom sempre descomedidamente êxtático quando  apresenta a disciplina espiritual de seu retratado, uma cadência aliterativa ao descrever seus anos de penúria em que rondava por uma Berlim indiferente a seus ralos dotes estéticos de pintor, a sua solidão passional transfigurante no quartinho miserável em que compunha suas idéias políticas que iriam preencher o Mein Kampf, a sua imponência estóica de manter um silêncio concentradamente avaliativo quando das primeiras derrotas militares na invasão da União Soviética. Fest acompanha passo a passo a trajetória de uma entidade soturna e profundamente solitária até a sua ascenção ao topo, e demonstra a justiça determinante que vigora por sobre os super-homens. Mas, uma vez ou outra, lembrando que escrevia isso tudo em um período em que a memória recente matizara Hitler como um demônio intocavelmente não relativizável, Fest desconversa, faz uma pausa para satisfazer as exigências do vulgo, faz vênias burocráticas à opinião estabilizada ;  para citar uma expressão popular: doura a pílula. Em uma parte em que compara Hitler a Stalin, Lênin, Trotski e Napoleão, não esquece de salientar logo a seguir o apesar de Hitler ser menor que todos esses nomes. Qualquer estudante secundarista saberia que retirar Hitler para um degrau abaixo de Stalin, ou Trotski (o parricida inconfiável, na visão de Churchill), só se presta a maquiar uma opinião resguardada que se mantêm no foro pessoal do biógrafo. No prefácio (já por si mesmo fundamental) da obra, Fest salienta a grandeza histórica de Hitler, pegando de referências de Jacob Burckhardt para ressaltar que tal grandeza nada tem a ver com a estatura moral. 

Joachim Fest, morto em 2006, faz um trabalho notável, profundo, com uma erudição elegante com marcado acento alemão (às vezes é necessário uma atenção acirrada do leitor para aproveitar as nuances filosóficas da obra). A mais completa biografia de Hitler. A própria história de vida  de Fest é substancial: foi opositor expresso ao nazismo, mas, soldado da Wehrmacht, foi capturado e mantido preso na França até o final da guerra. Sua intimidade com Hitler nos anos de pesquisa e composição desse livro não poderia não ter deixado de gerar uma simpatia para com o promulgador do nazismo, ainda mais pelo escopo altissonante da obra em ser um trabalho intelectual independente a concepções formadas e pré-julgamentos. Na descrição dos últimos momentos de Hitler, contudo, Fest mostra que o longo olhar lançado ao abismo (no aforismo de Nietzsche) não o fez perder o senso humanitário e a percepção da derrocada espiritual do século XX. Mostra para um leitor recompensadoramente cansado ao final das quase 900 páginas de texto que o paranóico que foi Hitler sucumbiu ao enorme peso de sua sobre-humanidade e solidão, momentos depois de ter testado  em sua cadela Brondi a eficiência do veneno que iria matá-lo.

Em completa contraposição conceitual e temática ao livro de Fest, tem-se o monumental "Massa e Poder", de Elias Canetti. Pouco se referindo ao nome de Hitler, que aparece somente no sombriamente alvissareiro pósfacio, Canetti produz um estudo abrangente sobre o outro lado que promoveu a grandeza histórica de Hitler: a alienação inata das massas, sua fácil condução pela orquestrada imagem imperiosa, e a infinita necessidade do homem pela veneração. Iniciando por uma investigação do psiquismo mítico da personalidade das nações européias, relacionando cada qual a uma força da natureza (a da Alemanha sendo representada pela floresta: a disposição  militar das árvores em estar em enfileiramento régio), Canetti faz um manual imprescindível sobre a inexorável rendição das massas ao Mal. O que ele diz, através de uma inteligência para a qual não escapa a mais efêmera e indistinta propensão humana, é que, enquanto o homem permanecer avesso ao esclarecimento, refugiando-se na comodidade falsa e letal das massas, novos representantes dessas massas, medíocres e perturbados como Hitler e Mussoline, continuarão aparecendo em curtos períodos sincronizados de tempo para comandar mais uma vez o ensaio da destruição absoluta. Olhando diretamente para o Abismo, confrontando-o sem medo, Canetti vê a pequenez real de Hitler e a grandeza da ignorância humana que o espelha e o elege como o Eleito.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

De Uma Noite Insone

Há alguns anos, deprimido diante ao que me afigurava ser um constante fracasso emocional, escrevi alguns cartázes de urgência com a frase”Jamais, em qualquer ocasião, magoe as pessoas!”, e afixei em pontos estratégicos pela casa. Quando retornei, ao final da tarde, encontrei-os empilhados sobre a estante, e imaginei que a moça da limpeza deveria ter sentido um constrangimento quase igual ao meu por não saber onde colocar aqueles frutos do meu esquecimento. Uma das histórias dolorosamente inesquecíveis e redentoras do meu avô, que ele a contava sempre à atenção dos constantes pedidos da família, foi quando, em uma de suas idas da fazenda à cidade, parou sua caminhoneta para auxiliar um homem que se encontrava com o carro danificado ao lado, na estrada de chão. Meu avô não se lembra que peça sobressalente de sua caminhoneta ele dispôs para sanar o avario do veículo, ele só se lembra da para sempre incompreensível resposta que deu quando o desconhecido lhe perguntou quanto havia sido a ajuda, e meu avô respondeu:”Uns dez reais e morre o assunto”. Como haveria de ser, um mês depois, meu avô se viu com o pneu do carro retalhado, em uma estrada de terra de pouquíssimo movimento, sozinho e sem macaco sob o sol a pino… e quem aparece? Para-lhe do lado aquele mesmo desconhecido, com um sorriso cordial e uma disposição de erguer o carro com os braços, se fosse preciso. Mas não foi; ele retirou seus acessórios do porta malas, trocou o pneu de aro espesso e trabalhoso, detectou que se perdera um dos parafusos e usou um dos seus. No final, diante o homem suado e sujo de terra, meu avô profere aquela já por ele intuída sentença de condenação:”quanto foi?”, ao que o homem responde:”ô compadre!, coisas assim a gente não cobra não. Somos um pelo outro.” Foi a maior vergonha da vida de meu avô, ele contava. Ele nunca desejou tanto um tapa na cara. Imagino que, numa escala continental, ele se sentiu como a companhia imperial inglesa diante todos aqueles indianos seminus sentados em posição de lotus e não reagentes, que conseguiram a independência nacional através de uma arma inédita na història: o constrangimento do lado que detêm o poder, pela súbita consciência explícita da desarroada desproporção do uso do poder.

Esse não é um assunto superficial, e é uma surpresa encontrá-lo em seu blog logo cedo ao acordar. Minha preocupação constante continua sendo o de não magoar as pessoas com o que digo, por várias razões. Piegas dizer isto?é;mas não sei dizê-lo de uma forma menos convencional, menos lyaluftiniana. Ao mesmo tempo, acho salutar expressar o pensamento, com toda a afronta a enorme tendência ao senso comum que nos domina, com seu poder de atração quase irrefutável. Por isto a surpresa de, após um noite de insônia diante o micro, aterrorizado diante o passeio alucinógino por tantos endereços cheios de pretensões, vaidades, inocuidade de espírito e de intelecto, com “ensaios” literários atravessados em colunas opressivas de propaganda de varejo e últimas novidades tecnológicas (textos que sempre me lembram aqueles coitados sentados em pleno centro urbano, com um colete amarelo no qual se lê”Compra-se Ouro”), retorno ao seu espaço e vejo essa confluência cigana de medos intimamente arraigados sobre fúria, necessidade de calma, e ainda a necessidade da crença desesperada na palavra.

Vou ter um filho daqui a quatro meses, o que me faz temerosamente feliz. E a maior lição que prevejo pela frente, a passar para ele, é o exercício salutar e superestimadamente sofrível de engolir sapos, e ao mesmo tempo incentivá-lo ao contato com mortos ilustres que nunca fizeram outra coisa senão expulsar anuros a grito. Ensina-lo que a gentileza possui uma estética muito sui generis, às vezes não tão catártica quanto acompanhar aos berros “God Save the Queen” dos Sex Pistols, mas mais verdadeira e compensadora na hora de saber o valor de favores desabnegados e aceitar o dedo em riste no trânsito até que se desgaste por total inapetência a vontade onanística de matar. Por que, no primeiríssimo momento que precede à reação, nós somos uns serezinhos cruéis. Mas só nesse enorme e libidinoso momento inicial.


Para terminar, uma lembrança de uma grande palestra do Joseph bródski ( no livro de ensaios”menos que Um”), que versa sobre a interpretação do dito “ofereça a outra face”. Bródski diz que ignora-se, a maioria das vezes, o que vem depois neste vaticínio, que é: “e se alguém lhe solicita acompanhá-lo por uma jarda,vá com ele mais cem”. E cita o exemplo de um prisioneiro de um gulag, que, oprimido por um guarda à tarefa inócua de remover um monturo de pedras de um lado para outro do pátio da prisão, o faz inúmeras vezes, durante um dia e uma noite inteiras, durante muito mais tempo que o guarda levou para se humanizar e olhar aquilo como o reflexo de seu brutal constrangimento.

                                      (publicado originalmente como comentário, no blog do Milton Ribeiro, em 9 de abril de 2009)

Fear of Music




De tempos em tempos eu me desfazia completamente de tudo que tinha de música. Já fiz isso, que me lembre, três vezes, pegar caixas de papelão e enchê-las com meus CD's, ou, em épocas mais antigas, de meus bolachões de vinil, e dar um sumiço neles, vendendo-os em sebos no centro da cidade a preços módicos, ou doando-os a conhecidos. Era um stress musical que só se resolvia com esse sacrifício radical. E havia tantas peculiaridades envolvidas nessa abdicação, que já pensei se não haveria algo equivalente naqueles estudos detalhados de Freud sobre os frenesismos da mente. Se não havia passado pelo divã do célebre psiquiatra austríaco algum jovem da classe média de Viena que se comprazia de tempos em tempos a abrir mão de seu gramofone e das partituras das obras completas de Haynd. Pois eu me sentia uma espécie de Caso Schreber, naquele relato clássico de Freud sobre o juiz que se interna pelo resto da vida num manicômio privado porque intui que não pode estar de todo certo achar-se noiva de Deus e centro magnético do universo. Eu me achava numa situação que, para alguém incapaz de viver sem música, era quase proporcionalmente tão preocupante não sentir mais nada diante o solo de cinco minutos de Duane Allman em "Blue Sky" que ter certeza que raios emitidos diretamente de Deus se encontravam em meu corpo. Não sabia o que acontecia comigo, mas era tomado por um impulso verdadeiro e irresistível.

Das últimas duas vezes em que fui tomado por essa afasia musical, contudo, resisti a abrir mão apenas de dois CD's. Dos quase quatrocentos álbuns que tinha, (quantidade não verdadeiramente substancial diante a dos colecionadores profissionais), entre jazz, erudito, rock e derivados, só conservei dois discos do mesmo compositor: Astral Weeks e Moondance, de Van Morrison. Isso me parece mais emblemático e estranho por Van Morrison estar longe de ter a representatividade íntima que outros artistas tiveram na minha vida, artistas que não relutei em condená-los à caixa. Não dei o nome de Van Morrison a meu cachorro, como fiz com que meu Rotweiller fosse agraciado com o nome de Miles Davis, e não foi esse velho irlandês o responsável por minha esposa ter me olhado com uma cara de piedade estarrecida como se eu fosse o louco tradicional da cidade quando sugeri que nosso filho se chamasse Jethro. E, a guitarra imaginária que toco no chuveiro não é a do ex-componente do Them, mas a de Clapton (tãrãrãrãrãrãrããããã- tããrãrãrãrãããã...). Freud na certa iria querer saber porquê, diante a magnanimidade de "Kind of Blue" e da Nona Sinfonia, só a voz rasgada do Morrison acalmava minha musicofobia.

Nesse final de semana, precisamente na noite de sábado, me veio claramente a resposta que faria o charuto de Freud parar em meditada atenção no meio da boca. Ouvindo o álbum "Moondance", depois de vários meses distante dessa obra ímpar, eu soube a razão de me cansar de tudo que me passara pelos ouvidos sem que o branco mais negro da Irlanda me afetasse um tiquinho sequer. "Moondance" é cheio de leveza, brilho real, atmosfera primaveril, calor humano, anti-intelectualismo; "Moondance" é uma das alegrias de viver, um esconjuro da alma, um delicioso sol amistoso por toda parte. Quando ouço a primeira frase cantada do disco,               

         Half a mile from the county fair
        And the rain keep pourin' down


eu me sinto molhado pela chuva ao lado do rio, com as varas de pescaria na mão. Todo "Moondance" tem algo que raramente se vê na música pop: uma iluminação genuína, uma simpatia expansiva por toda a humanidade, uma amizade whittmaniana. Morrison e sua trupe orquestral de músicos se interagem com uma franqueza desarmante. Em "Caravan", uma das músicas mais lindas de todos os tempos, a visão dos ciganos traz uma sensualidade irresistível,

       And the caravan is on it's way
       I can hear the merry gypsies play
       Mama mama look at Emma Rose
       She's a-playin with the radio
       La, la, la, la... 


E "Astral Weeks" é a antítese de "Moondance". Fala do lirismo da solidão interior, da busca espiritual, da meditação e das lembranças. "Astral Weeks" merecidamente aparece entre os dez maiores discos do século XX, por sua candura, sua tensão e seu repouso, o mundo de plenitude incomum e original do dessa vez introspectivo Van Morrison entoando o mantra,


       If I ventured in the slipstream
       Between the viaducts of your dream
       Where immobile steel rims crack
       And the ditch in the back roads stop
       Could you find me?
       Would you kiss-a my eyes?
       To lay me down
       In silence easy
       To be born again
       To be born again


Nesse sábado à noite, bebendo um vinho no direito a meu momento de solidão inviolável  trancado nos quartos do fundo da casa, eu tive mais uma vez esse antídoto contra a mesmice e a pretensão que existe por grande parte da música grandiosa e desgastante, de câmara, polifônica ou de três acordes, improvisada ou de partitura. Só faltou a percepção premeditada de trocar o vinho por um bom uísque de sabugo irlandês.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Someone's knockin' at the door / Somebody's ringin' the bell


WILLIAM FAULKNER


Discurso do Prêmio Nobel 



"Senhoras e senhores, sinto que este prêmio não foi concedido a mim enquanto homem, mas a meu trabalho — o trabalho de uma vida na angústia e no sofrimento do espírito humano, não pela glória e menos ainda para obter lucro, mas para criar dos materiais do espírito humano algo que não existia antes. Assim, este prêmio está tão somente sob minha custódia. Não será difícil encontrar, para sua parte financeira, um destino condizente com o propósito e significado de sua origem. Mas eu gostaria de fazer o mesmo com esta aclamação também, utilizando este momento como o pináculo a partir do qual posso ser ouvido pelos jovens homens e mulheres já dedicados à mesma agonia e faina, entre os quais já está aquele que um dia estará aqui onde eu estou.

“Nossa tragédia, hoje, é um geral e universal temor físico suportado há tanto tempo que podemos mesmo tocá-lo. Não há mais problemas do espírito. Há somente a questão: quando irão me explodir? Por causa disto, o jovem ou a jovem que hoje escreve tem esquecido os problemas do coração humano em conflito consigo mesmo, os quais por si só fazem a boa literatura, uma vez que apenas sobre isso vale a pena escrever, apenas isso vale a angústia e o sofrimento.

“Ele, o jovem, deve aprendê-los novamente. Ele deve ensinar a si mesmo que o mais fundamental dentre todas as coisas é estar apreensivo; e, tendo ensinado isto a si mesmo, esquecê-lo para sempre, não deixando espaço em seu trabalho senão para as velhas verdades e truísmos do coração, as velhas verdades universais sem as quais qualquer estória torna-se efêmera e condenada — amor e honra e piedade e orgulho e compaixão e sacrifício. Antes que assim o faça, ele labora sob uma maldição. Ele escreve não sobre amor mas sobre luxúria, sobre derrotas em que ninguém perde nada de valor, sobre vitórias sem esperança e, o pior de tudo, sem piedade e compaixão. Sua atribulação não aflige ossos universais, não deixa cicatrizes. Ele escreve não a partir do coração mas das glândulas.

“Até que reaprenda estas coisas, ele irá escrever como se compartisse e observasse o fim do homem. Eu me recuso a aceitar o fim do homem. É bastante cômodo dizer que o homem é imortal simplesmente porque ele irá subsistir: que quando o último tilintar do destino tiver soado e se esvaecido da última rocha inútil suspensa estática no último vermelho e moribundo entardecer, que mesmo então haverá ainda mais um som: sua fraca e inexaurível voz, ainda a falar. Eu me recuso a aceitar isto. Creio que o homem não irá meramente perdurar: ele triunfará. Ele é imortal, não porque dentre as criaturas tem ele uma voz inexaurível, mas porque ele tem uma alma, um espírito capaz de compaixão e sacrifício e resistência. O dever do poeta, do escritor, é escrever sobre essas coisas. É seu privilégio ajudar o homem a resistir erguendo seu coração, recordando-o a coragem e honra e esperança e orgulho e compaixão e piedade e sacrifício que têm sido a glória do seu passado. A voz do poeta necessita ser não meramente o registro e testemunho do homem, ela pode ser uma das escoras, o pilar para ajudá-lo a subsistir e prevalecer.”

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Toda Fera é Infinitamende Delicada

De dois anos para cá morreram 650 animais no zoológico de Goiânia. O zoo de Goiânia era um dos meus lugares preferidos. Ia lá com um livro, estendia uma toalha debaixo de um pé de jacarandá de frente à ilha dos macacos, e me envolvia com a leitura e a contemplação da paisagem. Muitos outros leitores desocupados seguiam o mesmo ritual. Era bom saber que a cidade em volta se compadecia de seus infortúnios cotidianos, e eu me regalava a simular a vida de um nobre culto do período do império. Fazia esses regalos durante minhas férias. O zoo de Goiânia situava-se numa das áreas nobres da cidade, cercado de prédios residenciais em que cada apartamento custa um milhão de reais. E tinha uma área verde inigualável, com árvores centenárias, muita água represada, muito ar, sol, silêncio. Chegava a ser melhor que minhas visitas aos cemitérios tradicionais, e quase tão bom quanto as descobertas surpreendentes de aprazíveis igrejinhas barrocas quando me lançava em minhas andanças pelo interior de Minas.

Hoje o zoo de Goiânia tem pouca diferença de um cemitério, mas sem a áurea de indagação resignada das impossibilidades de retorno que os cemitérios tem. O espaço está vazio, o mato seco dominando todo campo da visão, funcionários uniformizados com a cara de "para onde eles vão nos remanejar?". A incrível quantidade de animais mortos foi empalhada e destinada aos museus. Lembro agora, que da última vez em que estive lá, um pouco antes da notícia de que aquilo se trasformara em um campo de extermínio vazar para a imprensa, fiquei horas olhando o velho chimpanzé solitário, afundado no maior tédio em seu largo de cimento quatro metros abaixo do muro das visitas. Acenei para o velho, falei-lhe em voz alta para que me ouvisse. Ele, um dado momento, parou de remoer o galho que tinha nas mãos, e me estendeu um aceno cansado, por pura educação. Não precisava ser veterinário para saber que aquele abandono estava errado. Só a sensibilidade latente da angústia dava a real premonição de que o velho macaco representava uma sucessão de doenças do espírito e da carne que resultaria em um escândalo abafado. Pois os administradores do zoo de Goiânia são o tipo de raciocinadores que acreditam que os animais não tem espírito passível de sofrimento. Aliás, os administradores do zoo de Goiânia são raciocinadores que só possuem um único e bem estabelecido pensamento: que são agraciados em estarem naquela função, por serem apanágios diretos de políticos da prefeitura e do governo. Aquele olhar de desesperança e agressão regurgitada que se dirigia ao vazio_ nunca a mim, sequer teria dado pela minha presença se não o tivesse chamado várias vezes_ que o chimpanzé João tinha, não representava mais a esses administradores do que o modelo suficientemente coerente que tinham que oferecer, vez ou outra, para um público que justificava seus altos salários.

Dois anos. 650 animais mortos de causas desconhecidas. E o zoo de Goiânia só foi fechado há seis meses. E o diretor do zoo de Goiânia só foi afastado do cargo na interdição. Antes, durante esse período de chacina sincronizada, o diretor do zoo de Goiânia apareceu por várias vezes em órgãos da imprensa, de terno, a cara jovem protocolar e escorregadia, sendo chamado ora de Doutor, ora de Senhor. Nenhum jornalista foi mais contundente nas perguntas óbvias que o morno e absorto "a que o senhor atribui esses acidentes?". Um jornalista da TV Cultura chegou a trocar farpas no ar contra aqueles populares ignorantes que dirigiam suspeitas mais aventadas contra o diretor do zoo de Goiânia.

Toda fera é infinitamente delicada, escreveu Adorno em seu Dialética do Esclarecimento. A girafa cujos intestinos estouraram de salmonela. O lobo guará que morreu de tétano. O jaguar que morreu envenenado. O velho João que sucumbiu à enorme tristeza. O bizão que não resistiu ao cancro. As araras em massa intoxicadas pelo vírus. Todos infinitamente delicados e indefesos.

Os prédios em torno, altos apartamentos de luxo, não reportaram a indignação de nenhum morador, a testemunha ocasional dos crimes. Diante um montante de mortes, a imprensa de Goiás não tratou o caso com o peso que ele poderia ter. Foi mais um dos juvenis desmanzelos do Estado, essa criança faceira impossível com seus humores traquinas.

Há dois meses, na cidade de São Paulo, uma mulher foi assaltada dentro de uma delegacia. Nenhum dos policiais moveu um dedo para fazer alguma coisa em prol da mulher. A imprensa, mais uma vez, apenas reportou o fato, ordinariamente. Ontem, no blog do Milton, o Milton nos revelou que uma tal de Célia Ribeiro, jornalista do Zero Hora, mostrou a que veio em sua função perdida de formadora de opinião. Para ela é um absurdo que as funcionárias de um shopping escovem os dentes no mesmo banheirosreservado às donas distintas.

Assim afunda nosso humanismo, nossa inteligência, nossa representação, nossa capacidade de indignação. Cada animal morto no zoo de Goiânia é um prego a mais no caixão onde se deita o que antes nos distinguia como seres portadores de espírito. O olhar desviante do chimpanzé João nos define melhor agora, com sua infinita delicadeza.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O Desabafo do Diabo (algo sobre Dostoiévski)

Este é um texto meu, um tanto ingênuo e escrito com exagero passional, mas do qual gosto. Trouxe-me alguma felicidade em seu rápido momento de escrita. E, afinal, se não for o próprio pai para ver com olhos amorosos o que os outros veem apenas como manha permissiva, o que seria da saúde espiritual dos filhos?



Como Borges disse, o conhecimento de Dostoievski é tão inesquecível quanto o primeiro beijo e a visão do mar. Os grandes escritores se tornam mais próximos quando temos o privilégio de os encontrarmos ainda bem cedo, no começo da adolescência, seja porque assim os amamos com a falta de reservas e a capacidade abnegada do amor que tem o inocente e despreparado aprendiz, seja porque eles acabam por nos oferecer uma paternidade diante a crueza, e uma comunhão na verdade de que o motivo real do mundo se compõe dos fatores que a paternidade que temos em casa tem por obrigação nos salvaguardar: a injustiça, a violência, as aflições, o medo, a dor, o desprezo, o abandono, a apequenização, a anulação, a morte, o descompromisso omissivo, a indiferença. Como os exercícios de piano que uma criança prodígio desenvolve até se tornar um ás da música, o grande escritor transforma o leitor numa réplica bastante proficiente de suas angústias; contamina aquele que ainda não o entende, por falta da idade adequada, com sua ótica exclusiva, inconformista, que mais parece prejudicar do que beneficiar, até que a pessoa se torna expert na desilusão e desafeto com a vida. O grande escritor deixa aquele anel escuro e fundo no leitor, que eu vejo todo dia circundando meus olhos, e confere uma nova forma de andar, mais desguarnecida e auto-vigiada, como se a nos dizer ao pé do ouvido: “não te aprumes tanto, afinal tu és igual aos outros, falível diante a oportunidade certa”. Nada que favoreça a espécie, portanto. Por isso que a literatura apareceu bem tarde na história humana, depois que conseguimos colocar a família, a agropecuária e a moradia fixa nas bases da existência_ e estas, à custa de muito sangue, como não deveria deixar de ser. Um precursor neandertal de Dostoievski, mesmo circunstancialmente entendível, teria sido uma ameaça a nossa espécie. No começo de nossas rodas em torno da fogueira, poderíamos pressentir, sem entender, com uma funda angústia, o grito da queda cortando o céu, mas ainda não poderíamos ouvir o desabafo do Diabo. A alta literatura não dá muita bola para Darwin e a lei do mais forte; a depender dela, o mais elogiável para nós é a extinção, e seu único constituinte benéfico é que a ministra aos poucos, terapeuticamente: a extinção de nossos orgulhos, de nossa pretensão de certeza, de nossos diplomas, da nossa centralidade no mundo, de nosso deus. (Deleitando-se sempre de nossa incapacidade em aprender com essa fugaz chance oferecida de recuperação.) Sua técnica é contrária a de algumas primitivas tribos africanas que deportavam para o asilo os velhos e os aleijados, para que as tribos inimigas não lhes atribuíssem fraqueza: apetece-lhe os velhos e os aleijões, principalmente os que levam as distorções na alma.

Aprendi com outro escritor_ o imenso Montaigne_ a escrever falando de mim, me colocando no meio do texto onde melhor pareça adequado. Por isso: conheci Dostoievski aos quinze anos, namorando as lombadas douradas do volume duplo de Crime e Castigo, que via na estante do quarto de um amigo de escola. O Q.I. deste amigo_ que ele gostava sempre de deixar mal escondido sob uma soberba mal disfarçada_ era altíssimo, provado na obtenção do premio máximo no programa Flávio Cavalcanti. Era ruivo, com uma voz que não passava da garganta e só saía como um sopro rouco; e sua inteligência lhe servia desde já a procurar a sobrevivência no academicismo ou na política, porque qualquer outra opção seria desastrosa. Eu tinha ganhado um prêmio de redação, num concurso do qual não sabia que participava_ uma comissão de corregedores interrompera a aula de biologia e, diante toda a turma, tentou de todos os artifícios para que eu confessasse que havia copiado o texto. Diante minha cara estupefata de quem não sabia se ficava elogiado ou se os mandava para a puta que os pariu, conformaram-se, e como o bobo da vez, voltei para as carteiras do fundo com uma medalha barata no pescoço. Daí esse amigo, que sempre me avaliava como um estúpido inofensivo, um dos protegidos por certo tempo pela misericórdia divina, se aproximou de mim, e me tuteou. Pedi-lhe emprestado os dois inacessíveis volumes de Crime e Castigo, e cabulei uma semana inteira de aula lendo-os numa biblioteca. Foi uma das semanas mais felizes da minha vida. Como um trabalhador que batia o ponto de manhazinha, me fechava na carteira mais reservada da biblioteca do campus universitário, e ia para a Rússia, sentia o frio, dividia a cama com aqueles miseráveis e ofendidos em seus quartos escuros e atulhados (ninguém descreve com tanto peso quartos escuros e atulhados, como Dostoievski), estive naquele apartamento nefasto e segurei a mão que golpeou a velha locatária, senti a umidade e o degredo da cela siberiana; apertei nas mãos, como se fosse uma tábua de náufrago, a bíblia me oferecida pela mulher por entre o arame farpado; saí para a liberdade tardia com aquela mesma nostalgia de que deixava algo de inexplicavelmente acolhedor para trás, junto àqueles seres de ninguém, àqueles homens que eram cada um menos que um, e fui tomado por uma felicidade conformada, terna e sobre-humana, na companhia da última mulher que me aceitava, ela também deformada e envelhecida por suas próprias dores intensas para me ver sem a máscara que o desespero havia me confeccionado.

Ao contrário do homem de Rousseau, o homem de Dostoievski morria bom, por ter desgastado todo o rancor e a maldade, mesmo sem tempo para se aperceber disto.

Eu já não queria me parecer com o Morten Harket. Olhava aquela foto do Dostoievski, que acabava de se recobrar de um ataque epiléptico, sentado de mãos cruzadas nos joelhos, e queria ficar eu também com aquele aristocrático ar de degradação, aquele ar de que o corpo já não lhe resistia à força do espírito, como se o espírito fosse mortalmente radioativo e a carne fosse se cancerizando por dentro diante tanta energia.

Passei a não usar o dinheiro para o lanche na escola, investindo nas edições de bolso da ediouro do mestre. Li em seguida “Notas do Subsolo”, e aquilo me deixou estarrecido. Aquele narrador tinha uma negrura apenas aparente: uma leitura atenta veria que era um buraco negro indevassável muito mais intenso, que, ou se auto-engolia até que ressurgisse no ralo criado de uma avessa existência, ou desaparecia soltando um imenso grito de não aceitação no vácuo. Um inaudível, de tão absolutamente estridente, berro contra o nada. Aquele narrador é tudo, menos niilista. Aquele narrador não se prestaria a se decretar ateu, mesmo que o fosse, por ter a lucidez do despropósito de um órfão ufanar-se de sua orfandade. Aquele narrador preferiria o suicídio, para aferir o limite de sua falta de sentido, sendo esta a sua única criação possível (a autodestruição), para zombar daquele deus inexistente, partindo para o nada mais cedo, como quem repudia a falta de delicadeza de não haver uma opção melhor. Sem esse narrador, Camus teria sido abortado no útero de sua mãe, e Kafka jamais teria o sangue resfriado até a linfa de um inseto.

Marshall Berman (em “Tudo que é sólido desmancha no ar”) explica a famosa cena de “Notas do Subsolo”, em que o narrador se impõe o confronto com um militar que mal se dá por sua presença, sendo ao narrador uma vitória apenas o sofrível não abaixar a cabeça ao passar ao lado deste homem imponente, seguro de si, cheio de infalibilidade e respeito_ Berman explica como o confronto silencioso e tenso entre o homem oitocentista (o militar) e o moderno (o narrador), contrapondo a certeza de valores que estufava de segurança o primeiro, com a perturbação, incertezas, e experiência com o horror da história, que atiraria o segundo no fundo buraco da desesperança.

Eu vejo essa batalha_ que só é uma batalha para o narrador, pois o militar está satisfeito demais consigo para sequer notar seu confrontador_, como uma batalha espiritual. O narrador é o homem_ ou antes, a entidade_, cuja miséria da existência o destituiu de qualquer galardão. Suas roupas estão em frangalhos, seus sapatos furados, deixando seus pés em contato com a lama do caminho. Se houve atrativos em sua figura, sua amargura transformou a juventude em rugas secas pelo rosto, em dentes devastados. Ninguém imaginaria que possui um intelecto potente, um conhecimento primoroso. É perigosamente demoníaco; sua atitude em não abaixar a cabeça é, porém, intimamente religiosa; refaz numa rua movimentada de Moscou a insuspeita encarnação do Louco de Deus; traz para o meio da multidão composta de famílias felizes, a sua invisibilidade de hastear a meio mastro a bandeira do Absurdo. Em algum momento infinitamente distante, a parte de seu espírito que anteriormente acreditava e ouvia _ a criança!_ aceitou com júbilo o preceito de deixar tudo para trás e seguir a Verdade. Só que_ como naqueles cortes cinematográficos súbitos_ já não acredita, já nem se lembra do menor fiapo de algodão do sonho. As palavras deixaram de ser sagradas, perderam a inicial maiúscula distintiva. As palavras, como sua voz, como seu olhar, estão em caixa baixa.

O narrador pretende manter a cabeça alta diante o conformismo cego e feliz, a explicação fácil e doce, ao determinismo, a diferença elitista entre o bem posicionado e o ninguém. Quando mantém a cabeça altiva diante essas certezas e boa digestão, que tanto reduziriam o homem no século que despontava, ele se faz merecedor de um deus, o único entre todos os condenados daquele domingo festivo que no efêmero instante antes do provável desaparecimento, alcançou a plenitude que o distinguia, tornou-se sobrenatural… mais: o único homem. O raivoso, soberbo, livre, indomável homem, que poderia comportar o primeiro instante da criação.

                                      

Dois Filmes sobre nosso Desarroado Modo de Vida

CAPITALISMO-UMA HISTÓRIA DE AMOR, de Michael Moore


Um tanto mais panfletário que antes, Michael Moore confirma em seu último filme, “Capitalismo-Uma História de Amor”, toda a sua fiel constituição de americano médio, ingênuo, satisfeito com sua obesidade não competidora, com seu boné de beisebol e seus moletons de adolescente tardio, sua perguntas diretas que querem abordar o assunto sem pompas; enfim, o legítimo cidadão dos Estados Unidos de hoje que, na generosa amplitude das possibilidades fornecidas pelas mídias daquele país, resolveu se tornar um cineasta documentarista.

Nesse filme sem muitas novidades, vemos os mesmos trejeitos explorados exaustivamente nos outros filmes do diretor: o confronto urbano com políticos e mega-empresários; a escolha de um tema (o capitalismo, nesse caso) e sua “explicação” didática superficial, com recortes emprestados de antigos filmes preto-e-branco do governo, e a trilha sonora do rocabilly dos anos 1950; a visão de uma América nos escombros, dominada por uma espécie de Protocolos dos Sábios do Sião formado por executivos e políticos gananciosos; e o mesmo humor de programa de televisão aos domingos e a costumeira malhação a George Bush.

Tudo isso seria constrangedor se Michael Moore tentasse ser um milímetro diferente do que é. O seu grande trunfo é ele ser bem resolvido com suas insuficiências e falta de sutileza. Com a cara de garoto cujo passatempo preferido é devorar enormes quantidades de comida industrializada de frente à TV, Moore não explora o que em mãos inábeis seria a sua natural pendência física ao cômico, não dá uma de intelectual, não se preza conscientemente ao papel de guru. Quando, nas cenas finais de “Capitalismo”, ele instiga o espectador a uma anacrônica e surrealística revolução socialista, o pieguismo é aplacado pela intimidade alcançada com o público de que seria exatamente isso que ele proporia se estivéssemos numa mesa de bar. A familiaridade inadvertidamente honesta de ser um americano padrão, que não foge de nenhum dos estereótipos, a nos mostrar os restolhos e as enormes falcatruas de sua antiga terra dos sonhos.

Ainda assim, o puro andamento documentarista reserva algumas surpresas. A maior delas é ver três congressistas americanos num flagrante estarrecedor para os políticos brasileiros, agindo conforme as crenças democráticas rezam que devam agir: a favor do povo. Da tribuna, uma congressista execra furiosamente o banco Goldman Sachs, negando-se a liberar um centavo sequer do dinheiro público para livrar essa instituição da bancarrota. Seria como vermos um dos nossos congressistas denunciando a roubalheira legalizada perpetrada pelo Banco Itaú!!

Outra surpresa é vermos uma voz do congresso ordenando, através de rede nacional, que as famílias informadas que tinham que deixar as suas casas para pagarem a dívida com os bancos, NÃO ABANDONASSEM SUAS CASAS, NÃO DEIXASSEM DESPEJAREM-SE SOBRE HIPÓTESE ALGUMA. Fez-me lembrar de John Updike, no limite a que conseguia ir a sua defesa ao país no qual nascera, dizendo que os EUA lhe pareciam o melhor lugar para se viver porque nunca tinha sido incomodado pelo Estado em nada do que fazia.


KOYAANISQATSI, de Godfrey Reggio


A música de Philip Glass nunca foi tão impactante quanto a que ele produziu para esse filme extraordinário. Depois que assisti a Koyaanisqatsi, me deixei levar pela crença pessoal de que toda a invenção do cinema culminava na justificativa da existência desse filme. Começa com uma série de cenas da natureza. A câmera sobe do fundo de uma caverna para captar no orifício acima na rocha uma família de morcegos, voejando num véu de luz solar. A dança das marés, a formação e movimentação das nuvens, a areia em constante mutação do deserto, o anoitecer no meio mais ignoto do Pacífico. E tudo numa plasticidade impecável, como se o diretor tivesse conseguido o feito inacreditável de amestrar forças selvagens da natureza para se comportarem condizentemente com o momento do filme. Cenas tão límpidas que vistas na tela grande do cinema provocam aquelas reações físicas despertadas pelo deslumbramento: uma leve contração das glândulas salivares, uma elevação dos pêlos da nuca.

O filme vai ganhando uma imponência assustadora à medida que passa a mostrar as cidades e o animal humano em seu habitat. E a trilha de Glass, ameaçadora e profética, alcança a vantagem invejável aos outros compositores contemporâneos de se adequar perfeitamente ao mecanismo visual requerido para dar a devida grandeza à música minimalista. Os detratores de Glass ao menos deviam reconhecer o importante favor que ele fez com essa trilha de converter muitos ouvintes ao minimalismo (eu incluso).

Enfim, um documentário fundamental para se entender como se pode fazer uma crítica contundente à forma de vida que, se a espécie que somos hoje sobreviver à contingência inacreditável da evolução pelos próximos milhares de anos e se transformar em algo melhor, vai ver como um suicídio global e uma prontificada disposição social à infelicidade.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Breviário blogísticus

.Framboesas

         Desde criança meu sonho é provar framboesas. Compro-as por um preço proibitivo num empório de importados, escondido de minha esposa (50 gramas por 15 reais??? o equivalente a um pacote de fraudas!!!). Atravesso a esquina e, por debaixo de uma marquise mais ou menos deserta, ponho-me a conferir se aquelas frutinhas bem humoradas tem mesmo o gosto de balinhas translúcidas fabricadas. Abro a embalagem com o desenho de uma família dinamarquesa feliz na tampa, e jogo duas framboesas na boca. Em nada decepcionam minhas expectativas. No orifício apicial pode-se encaixar a ponta da língua com precisão. Os pequenos gomos se soltam numa facilidade refrescante. Sua doçura é menos enigmática que a da amora, mas infinitamente mais alegre. Olho para os lados para ver se minha esposa não saiu mais cedo do obstetra, e só me deparo com uma velhinha de vestido de chita florida me acenando com a mão. Não é uma pedinte, mas diz com um fiapo de voz que precisa almoçar, apontando para um restaurante. Da carteira, saco dez reais que me sobraram e lhe dou, pronto para partir em retirada. Ela, pega de surpresa diante tanta generosidade, me retêm pela mão e me abençoa de todas as maneiras possíveis. De outra sorte, o peso de consciência do flagrante mereceria tamanho reconhecimento equivocado de caridade?




.Plumbismo

        De visita a um amigo, este circunavega o assunto até chegarmos a seu interesse principal dos últimos anos: uma antiga teoria da década de 1970, que diz que a espécie humana tornou-se excessivamente violenta pela contaminação com o chumbo. Aponta fatos precisos, estatísticas de assassinatos, aumento de internações de pacientes em manicômios, tudo sincronizadamente ocorrido desde a revolução industrial e das grandes fábricas de Manchester, jogando toneladas de fumaça do chumbo fundido na atmosfera. Chumbo nos alimentos, em insumos agrícolas, e a absurda quantidade de chumbo utilizado nos produtos para as guerras. Esse amigo, advogado aposentado e ex-presidente da OAB, explica excepcionalmente bem para um rábula as consequências neurológicas dessa intoxicação. A encefalopatia ocasionada altera o comportamento, emburrece, e faz com que as pessoas adotem atitudes violentas. Lembro-me, então, que esse distinto senhor que me esclarece foi, até pouco tempo, um dos homens mais temidos do município. Não podia-se ficar a seu lado com completa desenvoltura. Seu andar ereto, sua barba aparada com esmero, sua forma em não cumprimentar sem que antes se lhe cumprimentassem, eram tidos como direito legítimo de uma personagem tão cerebralmente capaz. Um dia, enlameado do chapéu às botas pelo trato em seu jardim, seu cão o atacou por não reconhecê-lo. Passou muito tempo internado num hospital, e os médicos realizaram-lhe um enxerto muscular no braço direito. Desde então tornou-se um homem substancialmente diferente. A acepção unânime da cidade tendia a ver nisso a descida para a velhice. A doença o debilitara. Sua esposa, que há tempos dera aula na universidade para mim, diz que agora ele obtinha paciência para coisas que outrora o levavam a acessos de fúria. E vive obcecado, me disse a mulher, por essa teoria imerecidamente esquecida, de que todos, sem exceção, somos intoxicados pelo excesso de chumbo.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Júlia

Enquanto todo mundo que nos rodeia, tanto os tios, as avós e os amigos, acredita que desde que soubemos da boa nova de que você viria, tudo passou a ser regido pelos mais imediatos improvisos e as mais inesperadas correrias, para que se compre o berço certo, o body-zinho mais fofo, o vestidinho mais charmoso, os sapatinhos mais incrivelmente encantadores, os laçinhos para cabelo para quem ainda não tem cabelos, os inhos e objetos ternos que faz com que a voz se afine e os olhos se enchem da comoção do charme infantil, ou as súbitas viagens para exames ginecológicos, os telefonemas de madrugada para acordar o médico para perguntar pelo remédio ideal para as dores nas costas de sua mãe, as pesquisas por conta própria para saber se seus soluços são normais_ enquanto a apreensão da realidade corre acelerada por esses mecanismos aleatórios em que todos se juntam no disparatado compromisso de te dar amor, eu, a cada noite, deito minha face por sobre a barriga no interior da qual você não para de se agitar, chutando e fazendo montinhos doloridos por debaixo das costelas de sua mãe, e fico sentindo o silêncio de súbita quietude que é seu reconhecimento de meu calor paterno, e renovo a convicção de que cada segundo desses quase quarenta anos, eu não fiz outra coisa senão preparar delicadamente cada mínimo detalhe para a sua chegada, e sei que você, de sua parte, nesse universo aquecido no qual está instalada em confortável e segura provisoriedade, não faz outra coisa que se preparar para o grande dia em que vai ser recebida fervorosamente em meus braços.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Algo Próximo a Intimidade


Tony Judt

Eu estava na livraria Cultura quando me veio a notícia da sua morte. De imediato não reconheci a figura da foto que indicava o morto, seu crânio liso completamente calvo, seu olhar que me parecia guardar ainda segredos de sedução cuja imagem de misantropia que lhe impigiram a imprensa mundial tornava improvável qualquer outro traço de personalidade que não fosse a do contestador supercerebral, o revisionista implacável. Por debaixo do terno fino, porém, fazia-se perceber a firmeza muscular de um lutador de jiu-jitso, que não sei se realmente o fora, mas que suas declarações de saúde, as longas caminhadas e a esnobe força taurina, dava a impressão que sairia bem com um dos da família Gracie no tatame. Quando li na Carta Capital, então, as várias linhas dedicadas ao elogio de suas conquistas intelectuais e de até onde alcançara a antipatia de sua pouca importância à opinião massificada, minha memória antecipara a averiguação de quem era o senhor da foto. No meio do círculo miúdo de leitores na revistaria da loja, eu disse em voz alta: porra, morreu o Tony Judt! No meu histórico de escritores mortos, nunca me acontecera até então perder o escritor durante a leitura. Estou em menos da metade de sua grande obra, "Pós-Guerra", e não deixa de ser uma espécie de orfandade saber que as próximas quinhentas páginas já não contam com a possibilidade da interferência interativa do autor, que mudaria alguma ideia ou opinião circunstancial nas futuras edições da obra. Acabara a latência por detrás das palavras e tudo agora se solidificara numa proeza pela qual seus inúmeros detratores esperarão desgastar o verniz da morte para criticar acirradamente o que ele escrevera em definitivo.

Não havia lugar mais sintomático da tristeza que me causara a notícia da morte de Judt do que um shopping center. Não há um lugar mais apropriado para se achar que é um mero exagero, e um isolamento esnobe, lamentar sinceramente que tenha morrido alguém que só existira num tipo de vivência interna, alguém que adotara, no máximo, uma intimidade cuja vida dependia apenas da voz que meu cérebro conferira às suas palavras. Era como se entristecer com a morte de Homer Simpson. Ou como as lágrimas não de todo poupadas do constrangimento quando aquelas pétalas caídas sobre Macondo decretara o luto a José Arcádio Buendia. E era tanto maior essa auto-averiguação de uma tendente falsidade quando, na fila do caixa, não parecia que minha dor (dor??) era mais genuína e tinha maior direito à legitimidade do que os velhos costumes exibicionistas que se vê em uma livraria, num domingo lotado em que do lado de fora daquela babel do consumo haviam tendas gigantescas, com palco e carros de som alimentando uma quantidade multicolorida de pessoas vestidas com abadás. Os semblantes impávidos diante os manuais de direito; as conversas em voz alta não de todo indiferentes aos demais passantes sobre o melhor livro especializado em câncer; uma distinta senhora que falava com um português impecável à vendedora, anunciando ter lido de tudo de Orhan Pamuk. Eu sou vigilante demais para cair nessas imposturas, mesmo que perfeitamente inocentes, para ter me deixado ao livre balanço do choque que a morte de Judt me causara. Levo a sério aquela prédiga denunciadora do faresismo para ficar orando em praça pública, mostrando minha penitência a todos os donatários da velha colônia. O "Crime e Castigo", da editora 34, que segurava na fila, tinha a capa voltada para mim. Ter a tradução do Raskolnikov do Paulo Bezerra nas mãos envolvia a mesma fidelidade romântica de sair com a garota mais bonita do colégio não para confirmar a súbita ascendência social que essa sorte estupenda trás, mas para dar o livre curso da possibilidade de um amor sincero a tudo de delicadamente autêntico e secreto que há por debaixo daqueles exorbitantes atributos corporais.

Só conheço Judt há três meses, quando li "Reflexões sobre um Século Esquecido". A sua aparência de judeu férreo, trabalhador invergável, transparece em cada frase desse livro. Amós Óz certa vez fez um paralelo elucidativo entre o leitor atento e o leitor leviano. O leitor leviano vê em Nabokov o pedófilo enrustido, em Philip Roth o masturbador edipiano, em Anthony Burguess o homossexual lascivo; procura apenas os detalhes que ele possa tornar visivelmente retumbantes em uma obra complexa que oferece muito mais. De uma manifestação espiritual, o leitor leviano aproveita à sua maneira apenas os miasmas que possam divertir a carne mimadamente ofendida. O leitor atento, claro, é o oposto. Tony Judt tem uma série de apreciadores, mas também circundam em torno dele profissionais acadêmicos, políticos e da imprensa, comprometidos com várias causas particulares e cargos de ofício para serem seus infamadores incansáveis. Insistem , mal intencionados, em verem nele um detrator inconsequente.

 Em "Reflexões", realmente, Judt deixa pouquíssimas instituções e entidades em pé. Alguns são óbvios candidatos perenes à reavalição de suas importâncias históricas, como Kissinger, Nixon, Toni Blair, Margaret Thatcher, Kennedy. Outros, contudo, ainda são baluartes com elevada segurança para que alguém se aproxime sem fazer soar um alarme. E são estes que a proposital má interpretação de apanagiados de diversas vertentes do poder quer confeccionar uma imagem de irascividade iconoclasta em Judt. Pois dizer que Hobsbawm, apesar de confirmadamente ser um grande escritor e o maior historiador do século, é levianamente omisso em seu trabalho historiográfico sobre os crimes dos regimes de esquerda, não é descartar a importância de um intelectual do gabarito do alexandrino. Afirmar que Hannah Arendt não é uma filósofa, na acepção consistente e tradicional do termo, não só condiz com o que a própria Arendt dizia, como também, em desenvolvimento analítico, reafirma a vocação dessa pensadora em ser desatreladamente independente. Em contraposição, Judt recupera a afeição global de um Albert Camus injustamente enroldado à figura de Sartre, para dar-lhe por direito seu lugar entre os maiores narradores do século XX.

Mas são os fortes textos políticos que revelam o temor gargulesco que as visões instituídas sentem por Judt. Sobre Israel, ele desmascara o golpe de astúcia que esse estado cometeu na guerra dos seis dias, um tiro de aposta na apiedante visão de vítimas eternas da Shoá que saiu pela culatra e trouxe o decadentismo de uma nova imagem de assassinos sem restrições aos líderes israelitas. Sobre a auto-imagem alienante que os EUA fazem de si mesmos, Judt mostra o quanto a historiografia norte-americana sobre a guerra fria é ufanista e cheia dos ressábios imperialistas, desconsiderando a verdade e os demais países envolvidos. Judt faz, tanto no prólogo quanto no último capítulo, uma síntese da dominação neoliberal, do emburrecimento progressivo da espécie humana, da falta de oposição consistente ao fim do estado previdênciário e às garantias contra uma realidade cada vez mais presente em que as empresas acabrestam o cotidiano dos homens e mulheres. Nisso a explicação do título de século esquecido, na repetição criminosamente  "inocente" dos erros do passado recente.

Na fila do shopping, lembrei-me de uma crença cósmica de um amigo que acredita em um universo espiritual inapreensível, chamado Dragões e liderado pelo espírito pérfido de um Savonarola desencarnado, cujo único propósito é a conspiração contra o desenvolvimento da espécie humana.  Talvez seja a imponência novamente esguia do padre dominicano que tenha determinado aos nossos algozes invisíveis que em dez anos tenha morrido Edward Said, Bolaño, Sebald e Tony Judt. Talvez esse número esporádico e cada vez mais reduzido de representantes capazes de nos retirar da bestialidade, enviados por uma contra-força cansada, seja realmente preocupante para toda uma galáxia de funcionários treinados para a manutenção de nosso atraso. Mas interrompi essa elogiosa divagação para atender ao pedido de uma elegante mulher de lhe passar a Playboy com a filha do Fábio Júnior na capa.