sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Mister Mojo Risin



"Em Vozes de Marrakesch Canetti descreve a ereção imprevista de um burro suado e exausto, uma teimosa vitalidade que parece vingar todos os humilhados e ofendidos."
                                                                     Cláudio Magris, Danúbio.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Herzog, de Saul Bellow

Moses Herzog inicia-se no romance que leva seu  nome questionando-se se está louco. Se um acaso da linearidade da imaginação permitisse que ele se encontrasse com os outros conturbados chicagoanos, novaiorquinos, ou descendentes de judeus orientais erradicados na América, que compõe o cânone de entidades criadas por Saul Bellow, poderia saber que a negação consciente em fazer parte da lucidez do homem ocidental é uma das forças motrizes que tornam inigualavelmente interessantes seus gêmeos de incompatibilidade: Augie March, Henderson, Humboldt... Contudo, Herzog é a codificação mais apurada, o extrato mais denso, o caso clínico da psicanálise mais tipicamente clássico, entre os personagens bellowianos. O que falta ou há em excesso nos outros heróis de Bellow, é sistematicamente equilibrado e bem distribuído em Herzog, e por esse funambulismo em que se mantêm a tensão de tantas forças acondicionadas é que se pode dizer que Herzog, paradoxalmente, é o mais explosivo deles. Não possui todo o futuro em teste pela frente, como quando o alquebrado pela erraticidade da juventude Augie March encerra as 600 páginas de sua narrativa pessoal; ainda não é velho o bastante, e foi demasiadamente poupado pela História, para ser o último dos filósofos estóicos exilado num pequeno apartamento novaiorquino, como o sr. Sammler; não tem a leviandade de querer suplantar seus erros domésticos com a ilusão de salvar o mundo, como o Henderson; não margeia as zonas de perigo de alguns mafiosos comicamente ameaçadores de Chicago, e não tem como inimigo nenhuma força espiritual encarnada em um poeta fracassado, como Charles Citrine. Herzog é tão somente um intelectual norte-americano que vive meio conformado com sua dependência do reconhecimento do mundo acadêmico, um homem ultra-cerebral e culto que, contudo (ou devido a essas características), só percebe o seu enorme cotidiano insípido quando é  abandonado pela esposa; alguém que conhece a fundo todo o turbilhão da história, por ler sobre ela, e que tem uma privilegiada ciência do funcionamento das forças que regem a sensível máquina social, mas que só descobre os aguilhões da impotência quando um de seus laços de aparente conforto se desfaz. O que sobra a alguém vítima de tão súbito ataque de lucidez é, portanto, o questionamento angustiado sobre todas as suas formas de apreender a verdade, por isso a constatação natural de que não foi governado nesses anos_nessa vida toda_ senão pela ótica distorcida da loucura.

A forma decantadamente desesperada de Herzog em explorar a ruína do arquétipo de verdade que levou a sério por tanto tempo, é, de um modo em que revela a sua desistência de lutar no jogo participativo da razão moderna, chamar todos que formalizaram este mundo para prestar contas consigo. E Herzog faz isso da única maneira que o engano o ensinou a fazer, o doutorou a fazer: escrevendo cartas para as grandes personalidades da História, vivas ou mortas. Isolado em sua casa de campo, que, como a promessa de felicidade conjugal que ela inspirava, se encontra à beira da ruína (consertando as calhas quebradas, podando as árvores do jardim abandonado, dividindo uma fatia de pão previamente roída por uma ratazana), Herzog preenche seus cadernos com longos e soltos monólogos que nunca serão respondidos, ou por seu receptor já se encontrar consumado pelos séculos, ou porque os que poderiam fazê-lo jamais receberão essas missivas, que são compostas apenas pelo consolo da escrita, apenas pelo prazer subjacente que ainda sobrevive em Herzog do gozo do pensamento. Essas cartas formam um dos efeitos que tornam esse romance monumental: engraçadas, malucas, triviais, carregadas de ódio, discordantes das verdades impostas, anacrônicas, fetichistas, irônicas; cheias do que está do outro lado do terror e da tragédia: a comicidade libertadora do homem extenuado que se conforma da incrível segurança da renegação absoluta. Assim, Herzog constantemente interrompe uma tarefa caseira, retira eufórico seu caderno do bolso, e começa mais um de seus cabeçalhos apressados de início a uma carta. No táxi, nos bancos do tribunal onde espera seu massacre fechado diante a justiça para poder ter direito a ver a sua filha que lhe é negado pela ex-esposa. 

Das outras atrações que esse romance oferece, primeiro, é que poucas narrativas foram escritas com a energia e com a exuberância ligeira inexaurível de Bellow. O livro treme nas mãos; para um romance com tamanha carga de intelectualidade e ensaística digressiva, as folhas passam com rapidez própria dos best-sellers. A frase de Bellow é extraordinariamente vendável. Ele encontrou o pote de ouro no final do arco-íris procurado pela maioria dos escritores, que lhe permite escrever com a fluidez de Mozart e falar e se aprofundar em todos os dilemas pesados da filosofia. É o romance mais bem escrito dos últimos 60 anos em qualquer lingua. Para se obter a máxima plenitude de toda a riqueza cômica, humana, intelectual, estética que Herzog oferece, há de se embrenhar em releituras e releituras, até que o romance se torne um real coadjuvante de nossa maneira de ler e conhecer o mundo. Sem exageros. Não à toa que Herzog permaneceu por quase 50 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times, assim que foi lançado.

E mesmo com essa temática cerebral, Herzog é um romance movimentado. As cenas no tribunal são antológicas. Remetem às leituras de Kafka feitas por Bellow. Os tipos marginais, as prostitutas e pederastas que sentam no banco do réu, diante um juíz enfadado, nas esperas para as audiências públicas em que Herzog os assiste de longe, são envoltas pela análise conceitual de Bellow sobre a prostituição inerente aos sistemas de justiça e demais cínicas instituições humanas. Os passeios que Herzog faz com sua filha, os acontecimentos semi-trágicos que advém disso, o reencontro com a beldade enfurecida de sua ex-esposa (que o traiu com um de seus amigos), na delegacia de polícia. Tudo é narrado com uma excepcionalidade quase inacreditável. A luz do olhar de Bellow atravessa tudo, com a selvageria frenética do criador consciente de seus poderes, com a impiedade do músico que com sua sinfonia abole toda a medianidade que atravessa em seu caminho.

Esse foi um dos poucos livros que li em tradução e no original (tenho repúdio em ler em outra lingua que não a minha). O li primeiro quando tinha pouco mais de 20 anos, na tradução fantástica (e fidedigníssima) feita por Sílvia Rangel, para uma editora desaparecida chamada Símbolo. Por culpa deste livro, fiquei um ano sem escrever nada, e quase parei de ler, tamanho o impacto que teve sobre mim. Li mais umas três vezes essa tradução, e agora acabo de ler a tradução de José Geraldo Couto, recém lançada pela Companhia das Letras. A Companhia, felizmente, vem consertando o descaso das editoras nacionais em relação a Bellow. Tudo leva a crer que a editora de Luiz Schwarcz vá publicar toda a bibliografia de Bellow. Já lançou As Aventuras de Augie March, Henderson, o Rei da Chuva, e está programado para ano que vem o lançamento do sensacional A Herança de Humboldt. Se me fosse permitido dar uma opinião, pediria que, quando fosse lançar Herzog em edição de bolso, daqui a uns cinco anos, que restituísse a ótima tradução de Sílvia Rangel.



terça-feira, 27 de setembro de 2011

Monsieur Pain, de Roberto Bolaño


Quando dei por terminada a leitura de mais esse Bolaño, tive que me render à possibilidade inevitável de, enfim, considerar seriamente que o autor chileno seja mesmo o grande nome das letras que a imprensa literária tanto propagandeia. Junto a essa cogitação, vem o adendo indispensável de que eu não o tenha levado tão a sério justamente pelo empenho desta mesma imprensa em iconizar Bolaño, em macdonaldizá-lo (para usar uma figura cara aos demais novos autores latino-americanos, que se empenham em fazer com que um Garcia Marquez desapareça, pois romancistas coadunados pelo sistema não tem uma segunda oportunidade sobre a Terra). Daí que só a leitura extenuante de Bolaño para quebrar a barreira da adoração e restituir a originalidade que Bolaño possui, entrando em seu universo primordial no instante anterior em que a morte lhe conferiu essa sorte aziaga de pintor neerlandês em herdar a fortuna e a fama ao seu inútil fantasma. Resgatar o Bolaño das prateleiras esvaziadas pelo roubo dos fiéis das livrarias de Portugal; dos cursos de sofisticados doutores norte-americanos que assinam ensaios críticos antológicos na New York Review of Books; dos tantos autores nacionais que tentam ser empossados em sessões de ouijas e ter as mãos dominadas pelo mesmo movimento inspirado que escreveu as mil páginas de 2666. E restituir o Bolaño imaculado de quando era um vigia noturno em Paris, ou que passava noites na companhia de out-siders em aprazíveis cavernas espanholas, ou que viajava sem rumo pelos desertos políticos de uma América Latina que jamais se transformaria na route 66 e jamais o deixaria tomar whisky impunemente na carroceria de uma caminhoneta enquanto ele se angustia poéticamente pela magnífica derrocada do espírito continental rumo aos escalões subterrâneos. Sair rapidamente, de forma a não deixar nem a poeira das sapatilhas na soleira da porta, de blogs como o de Cassionei Petry quando as vistas apanharem a faixa sacramental do culto ao maior dos romancistas; cuspir enviesado e com cara de ofensiva repulsa quando ver mais uma vez o Milton Ribeiro ou o Ronaldo Bressane esculpindo as palavras do mestre em placas de bronze. Só assim, aceitando aquém do barulho do tráfego da movimentada rodovia e se refugiando na solidão opressivamente silenciosa das páginas de romances como Monsieur Pain, é que se pode começar a ter a real dimensão desse Bolaño que, para suplício das minhas forças, devo ceder à inexorável hipótese de que seja a maior presença literária no horizonte desse lado de cá do hemisfério e nesse lado da costa do Pacífico.

Essa dedicação centrada à obra e não à etiqueta é necessária para apreender a força desse curto romance, escrito por Bolaño no início dos anos 80 e que revela uma voz incipiente quase indistinguivel do restante de sua produção. Em Monsieur Pain vemos um Bolaño extasiado com o aprendizado da escrita, testando seu talento, esforçando-se por imprimir sua voz própria nas emulações de seus escritores preferidos, brincando com a cenografia e com as disposições de luz e sombra do ambiente. Essas identificações de formação, que nas mãos de um artista mais óbvio seriam algo desmotivador para a leitura, em Bolaño ganham um interesse genuíno por dar ao leitor o atestado prazeroso de que o autor de Detetives Selvagens não se limitara apenas à experimentação, mas já encontrava sua voz própria e o que se tornaria o grande tema de seus escritos. O que é muito gratificante aqui é que o autor, com menos de 30 anos quando compôs esse romance, parece ele mesmo se surpreender do potencial que se anunciava em seu ofício, assustando diante a ebuliência de situações, pausas, personagens e diálogos que nasciam de si à medida que a história ia se constituindo diante de seus olhos. Por isso este romance é como aquelas pensões dostoievskianas cheias de quartos de sótão e corredores escuros, onde se esconde da vida tumultuada da metrópole uma insurgência de seres originais, exóticos pertencentes ao mundo paralelo dos submundos particulares, carregados do estranhismo daquela classe de conspiradores sem foco mas não de todo inofensivos que respiram um ar e falam um idioma próprio. 

Em Monsieur Pain, o personagem homônimo transita por uma Paris prototípica, uma Paris londrina de chuvas ininterruptas e becos secretos, dos quais sempre irrompem perseguidores sorrateiros usando sobretudos; uma Paris tão deslocada e anacrônica quanto a Paris de Auguste Dupin, esse detetive criado por Poe, o autor americano que inventou o romance de detetives, o mais britânico dos gêneros literários. Não à toa Bolaño já anuncia aqui seu caráter cosmopolita, sua desvinculação a origens étnicas, geográficas e temporais_ no início do romance, ele provocadoramente faz Pierre Pain dizer que não conhece nenhuma palavra em espanhol_, sendo essa a primeira de uma multidão de suas obras cujos cenários são europeus, mexicanos, africanos, e cujo registro temporal varia da segunda guerra ao gansgsterismo e à violência subliminar sofrida pelos despatriados das ditaduras latino-americanas. Bolaño desde essa obra já deixa claro o seu distanciamento aos dogmas da literatura latino-americana, já se comporta como o que transita na contramão das restrições inerentes mesmo na mais alta produção dessa categoria de criadores vinculados a suas emotividades telúricas e a seus dengos líricos de raça. 

Em sua guarita de guarda noturno, onde aproveitava o muito tempo livre para escrever sobre as andanças sem rumo de Pierre Pain, Bolaño ousava não falar sobre o Chile, não vestir a camisa do Chile, não desfilar nas fileiras das muitas coalizões partidárias que lotavam a realidade fatual dos países latino-americanos do final da década de 70 e o imaginário cobrado pelos leitores de Vargas Llosa, Garcia Márquez e Manuel Scorza, que queriam passar férias virtuais através da página agridoce nos povoados ensolarados onde dormia a siesta o macho pós-colombiano rigidamente patriarcalista. Escreveu, ao contrário, sobre as atmosferas caras a Poe, a Kafka, a Chesterton, a Robert Walser, dando-se ao luxo nada modesto de mitificar uma Paris apenas para si. Anos mais tarde ele responderia que o romance de gênero tem pouca proeminência na América Latina por sermos subdesenvolvidos, à sua maneira já registradamente bolanesca, de quem com esse destemor também anda solenemente na contramão de outra das perniciosidades das letras locais em ser excessivamente elogioso para os escritores de província que traçam a soldo os perfis do coronelismo político. 

Assim, Monsieur Pain é um romance de gênero, mas, como nos filmes dos irmãos Coen e no Zodíaco  de David Fincher, oferece voluntariamente o anti-clímax que invalida o propósito do gênero. É sem sentido falar qual o enredo de Monsieur Pain. Trata-se de uma novela policial na qual os elementos são um a um jogados para fora do tabuleiro, até que o clima de aridez resultante dá a impressão de que o conteiner de tempo criado na mente do ficcionista é regido pela mesma força do ocaso sem sentido que impera sobre a realidade corrente. É inútil sabermos que Monsieur Pain é uma espécie de prestigitador, adepto do mesmerismo, chamado para curar uma vítima de soluços, e que se vê enredado numa atmosfera de nonsense e mistério cujo único nexo resultante entre os envolvidos é serem parados, de uma ou outra maneira, pelo muro eventual da segunda guerra (a história toda se passa no ano de 1938). 

O que importa, neste que é o melhor dos romances curtos de Bolaño (ombreando com Noturno do Chile), é justamente as qualidades que vem do que uma leitura apressada poderia dizer serem os defeitos da obra: a sua ingenuidade mimética da erudição do autor sobre o universo literário, a enganosa inconclusão_ ou, melhor dizendo, a sua extrema prepotência em emoldurar tudo num conjunto de símbolos, recorrendo mesmo a um compêndio faulkneriano para mitificar o trivialismo trágico do destino dos personagens após o término da narrativa; a sua vaidade em aproveitar o rendimento de cenas isoladas, sem que essas se apeguem diretamente à história. Os diálogos deste romance são tão bons que se desculpa ao autor pelas extensões de cenas, assim como a escrita que o Bolaño jovem utiliza nesta obra é tão eivada de passagens da mais alta lucidez poética que é um prazer ver o Bolaño saindo dos cadernos de rascunhos para a vida visceral da escrita verdadeira. Bolaño, por mais que mostre seus utensílios de ofício aparecendo por debaixo da cortina, não titubeia, não artificializa, não revela nenhum par de pernas de desconsolado lactente em seus passos rumo ao horizonte ainda longuínquo de suas duas obras principais. Bolaño é aqui um romancista genuíno, com todo o conhecimento do ofício, a ponto de ter plena consciência de para quem esse demônio que retira de dentro de si é dirigido. Monsieur Pain, neste sentido, por mais que seja gratificantemente meio alienígena ao notório Bolaño das obras maiores, é uma prefiguração a todos os caros temas do chileno. A contínua asbtinência e negação de Pierre Pain no final do romance é um prenúncio a Ulisses Lima e Arturo Belano, a Benno von Archimboldi, e os quatro anos a mais que dura a vida do personagem após o fechamento das cortinas consegue produzir aquele impacto dissonante que revela uma surda premonição do destino do homem que nasce no século XX, e morre em anos posteriores derivados. Não é pouco a insinuação de que, mais uma vez, em palavras truncadas, Bolaño não fala senão da América Latina.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Segunda Lei de Newton


Na metade da década passada recebi via celular esta mensagem: "Atende. Minha mãe morreu". A autora do pedido era minha mãe e a mãe relacionada, lógico, era minha avó Mirtes, que deveria ter, à época, oitenta e nove anos. Quem lesse aquelas palavras e as interpretasse sem o devido envolvimento familiar, acharia que eu era o mais desalmado dos canalhas, para que a própria mãe tivesse que me pedir direito de atenção. Mas acontece que, de maneira incontornável e gerada por anos de atritos, choques e desmandos irracionais, eu havia firmado a decisão de não mais falar com a minha mãe. Não estabelecera um prazo para esse afastamento, mas estava com a paciência tão exacerbada que bem me parecia que o tempo ideal de um rompimento desse porte fosse para sempre. Passaram-se dois anos de belíssimo sossego, no final dos quais minha mãe havia demonstrado que enfim desistira, não me telefonando, não me mandando mensagens, não obrigando que algum de meus amigos_ ou mesmo alguém completamente desconhecido_ intercedesse para que eu quebrasse o que, para ela, era meu "coração de gelo". Todas as suas tentativas batiam contra minha mais sincera indiferença, mas ela havia insistido demasiadamente. Aproveitara de sua influência jurídica e mandara em caráter de urgência duas viaturas da vigilância sanitária até minha casa para acabar com focos de mosquito da dengue; passava horas no telefone com algum colega de serviço, chorando; mandava-me presentes através de entregadores a domicílio, que acompanhavam longos bilhetes misericordiosos que pareciam escritos por uma freira da idade média. Mas eu já estava além do vexame e dos mais refinados pudores: eu abria a casa para os agentes da vigilância para que investigassem a denúncia e servia-lhes misto-quente; interrompia o colega intercessor, dizendo, com a alma leve, que eu nada tinha a ver com o fato dele ter que dar atenção à minha mãe; e ficava com os presentes, jogando os bilhetes na cesta de lixo, pois devolvê-los era também uma forma de mostrar que me importava.

De maneiras que era óbvio que algum fato terrível me aguardava por detrás daquela bonança de liberdade em que, finalmente, eu fazia jus à realidade de ter mais que 30 anos e ser independente. A morte de minha avó me pegou em cheio. Aquelas frases concisas da mensagem insinuavam tantos estados de espírito, tantos arrependimentos e necessidade de consolo efetivo, que, no meio da perplexidade de ter que aceitar o encerramento da única entidade no meio das individualidades enfadonhas que compunham minha família, tinha que aceitar também a hipótese de que aquele tom calmo, superiormente digno que minha mãe impusera naquelas palavras mudavam minha concepção dela. Era como se, com a morte de minha avó, minha mãe enfim encontrara o seu remanso na existência, suavizara-se. Mas eu já estava longe de qualquer caminho de retorno, e por isso, desliguei o celular, não informei a ninguém o meu paradeiro, e procurei um refúgio. Um amigo que conhecera a minha avó ainda conseguiu me encontrar, antes que eu saísse, ao que informei-o da verdade: minha avó falecera.

Sempre tive imensa curiosidade por meus antepassados. O pai de meu pai era índio. Gostaria de saber de qual tribo, como ele se miscigenara, em que ele acreditava, como era a sua voz, como ele tratava as mulheres de sua vida, qual a verdadeira concepção que meu pai tinha dele. Conheço em excesso o que se pode conhecer da família por parte da minha mãe, mas nada, ou quase nada, das inúmeras derivações regressas de tios, avós, primos, que compôe as miríades de parentes do meu pai. A mãe de meu pai, que faleceu aos 95 anos, era descendente de espanhóis, tinha belos olhos azuis e traços tão finos e delicados que sempre me ajudavam a cogitar os fabulosos acidentes da sensibilidade que fizera com que, há 3 gerações, os conluios de casta aceitassem que um silvícula arrombasse suas rígidas crenças sociais pela porta da frente. Ela tinha o encantador nome de Dercídia, que nunca vi mais em nenhum lugar, e ele se chamava pura e simplesmente João. No funeral do meu avô, a lembrança de meus oito anos retêm a sala de sombras taciturnas no velho casebre em que sempre moraram, o caixão estendido numa mesa de centro, as velas tristes que eufemizavam a cena aludindo à certeza muito mais terrível de que nunca haveria um reencontro; um casal de pobres para quem a pobreza nunca assustara e nunca lhes representara nada. Entre tantos mistérios da ignorância que dominava os ocupantes daquelas esquecidas cidadezinhas do interior, o que mais me chama atenção é o do poder indefectível para que fizessem sempre as escolhas erradas, que acabariam, assim que dado o primeiro e inconspícuo passo em direção aos seus destinos encerrados, com o restante de suas vidas. Nunca existiram duas pessoas tão incomensuravelmente incompatíveis quanto meu pai e minha mãe. Eu sou fruto de uma coalizão errática e impossivel. Apenas às minhas custas prova-se o desastre de duas retas paralelas que nunca se encontrariam terem se tocado no infinito. A unica comunhão que aquela criança de oito anos tem com seu avô, por isso, foi a do medo, o banal e ridículo medo do morto, que minha mãe incutiu na minha cabeça à custa de me proteger da influência daquela pobreza acentuada que só ela via. Tantos recados e sinais perdidos, tantas fotos que meu olhar deixara de apreciar _ o casal jovem e belo pintado em tons de azul claro na moldura abaulada_ apenas porque era fresca a impressão da importância da experiência que eu representava entre dois universos avessos, e quanto antes trouxessem a mim para o lado certo, melhor seria.

Eu puxei em tudo a família do meu pai, o que serviu a dar ares de arte superior às condenações que minha mãe me infligiu por toda a vida pela minha preguiça, a minha falta de ambição, o meu descaso corporal, a minha propensão doentia à lentidão, ao meu olhar vagaroso, à minha índole do músico em substituição à selvageria ostensiva do comerciante. Mesmo me formar numa faculdade foi o resultado de muita determinação castradora por parte dela, porque o Velho Índio sem nome e desconhecido o qual o distante cadáver proibido representava me acenava a deixar tudo e me enfunar num desaparecimento filosófico em algum lugar suave e perigoso no caminho oposto daquilo tudo. 

E minha avó Mirtes, somente ela, oferecia o grau de semelhança que permitia que me identificasse como pertencente à família de minha mãe. Minha avó Mirtes era uma exilada, alguém que perdera tudo, fora reduzida à estaca zero, a um impossível recomeço. Ela era professora doutorada, naquele tempo em que as professoras eram respeitadíssimas, falava três idiomas, era o que se chamava uma mulher de casta, vinda de uma família patriarcalista composta de juízes, advogados e médicos. Depois de ter dado 5 filhos a meu avô, meu avô a trocara pela empregada doméstica da casa. Isso foi algo pior do que a morte para uma mulher carregada de princípios católicos, de preconceitos de classe. Qualquer outra mulher desmoronaria. Seu filho mais velho tinha 11 anos, os outros quatro mal a viam por estarem confinados nos célebres e europeizados internatos daquela época. Ela abandonou tudo, recusou-se à disputa judicial impossível, à menção de desforra violenta por parte de seu pai e seus irmãos, ao apego doentio baseado na lástima eterna a seus filhos. Chamara dois advogados da capital e, educadamente, sem alterar as feições, fizera meu avô assinar o divórcio. O divórcio, na década de 50! Deixou o cargo de professora/diretora que tinha na escola, e, com o pouco de  dinheiro que tinha, foi para os Estados Unidos. Escolheu esse país pelas razões óbvias de a América ser, naquela época, A América_ e por dominar o inglês. Passou fome durante um massacrante período, mas a vejo invergável em suas roupas distintas de professora, seus grandes óculos escuros, sua maquiagem impecável, seu arsenal de palavras bem pronunciadas, sua incapacidade para a lamentação. Enquanto penava por lá, a esposa substituta de seu ex-marido fazia a cabeça de seus 5 filhos a aceitarem a inversão de verem nela a madrasta má, que renegara e abandonara os filhos, a mulher sem sentimentos, a alienígena. Por todos os anos em que minha mãe a mencionara e eu apreendia a conversa alheia entre adultos com minha atenção curiosa, minha mãe a tratava como "a Mirtes", aquela mãe convertida em madrasta que era obrigação odiarem-na, um judas para a malhação. Das poucas vezes em que a Mirtes atravessara o continente com o único propósito de visitar aos 5 filhos, estes eram escondidos dela, a empregada usurpadora já tendo-lhes inflamado tanto ódio e terror que não sobrava nem a mais leve consideração humanista.

Eu fui, por muitos anos, seu primeiro e único neto, mas não a conhecia. Como seu nome era raramente falado, e o ódio fora suplantado pela indiferença, a impressão que eu tinha era que ela não era desse mundo, ela era uma espécie de fantasiazão exuberante para a qual esgotara-se todo tipo de piada e curiosidade. Ela era a Mirtes que fora para os Estados Unidos, alguém em franco estágio de esquecimento coletivo. Quando tinha dez anos, surpreendentemente, começaram a me chegar as cartas. Longas cartas em papel apergaminhado amarelo_ ou o amarelo se firmou para mim pelo efeito do tempo_, escritas em uma letra bonita e disciplinada, que mesmo naquela época já me parecia antiquada, e assinadas, ao final das caudalosas 5, 6 ou 10 páginas, com seu nome e sobrenome. Ela achara, finalmente, alguém a quem pudesse quebrar o silêncio, o seu neto miscigenado que, assim como ela, também partira de uma aventurosa estaca zero, também era um alienígena. Não sei por quais bases ela intuira a minha sensibilidade, mas vejo isso como uma prova cabal de sua inteligência superior. Ter sabido, sem um traço de dúvida (como via nas cartas), que eu representava um novo começo, o fim de todas as vagas de sofrimento e atraso do passado do qual ela fugira e o qual lhe era violentamento ofensivo, era de uma lucidez extrema, e tanto era mais certo isso porque ela me alertava que isso não era nenhum privilégio, eu sofreria horrores por ser incompatível tal como ela o era.

Essas cartas eram vistas como coisas inofensivas por minha mãe. Cartas singelas de uma avó ausente ao neto que nunca iria conhecer. Deveriam falar as trivialidades das cartas, os "oi como vai", "abraços com carinho". Mas eram cargas de desforra acentuadas para uma criança de minha idade. Talvez esses textos foram meu primeiro contato com a literatura séria, ou mais, com as verdades fundamentais do homem, as torpezas, as injustiças, a crueza das relações familiares, a farsa do amor constitucionalizado, os dogmas do povo antigo que só geravam ódio e hipocrisia. Eu reconhecia a grande confiança que minha avó depositava em mim ao me erigir o receptor daquelas confissões. A ausência, o tempo, a geografia, haviam me dado, em compensação ao amor da avózinha dos pães de queijo, o tesouro de uma avó maquiavélica, na mais genuína e vantajosa acepção do termo. Suas cartas, que eu ainda as conservei as principais, formam o único testamento genealógico que tenho da história da minha família_ mais, formam o único testamento da minha família inteira.

Ali estão os 5 benéficos anos em que ela trabalhou com Vladimir Horowitz, o "mais gentil dos homens", o tempo em que trabalhou para João Gilberto, o" mais desprezível dos homens", suas viagens pela Europa e Canadá, seus estudos de aperfeiçoamento universitário, o dia em que ganhou a cidadania norte-americana, nos mais de 35 anos que vivera nos EUA antes de retornar em definitivo para o Brasil, no começo dos anos 90, quando a conheci pessoalmente. Por isso o meu impacto diante a informação de sua morte, e minha decisão de que pouco representaria ir vê-la naquele momento. Duas semanas depois, o meu amigo ao qual mencionei a morte de minha avó me telefona, simulando ira. Por algum motivo de consulta jurídica ele telefonara para minha mãe, e, findo o diálogo, aproveitou para dirigir a ela os seus pêsames. "A morte de minha mãe?", minha mãe retrucara, surpresa, e logo lhe respondera: "mas a dona Mirtes não morreu, ela está viva. Quem lhe disse isso?". Eu fui dominado por uma onda de surrealismo e caí numa gargalhada convulsiva ao telefone. Meu amigo chorava de tanto rir. "Quer dizer então que você está este tempo todo acreditando que sua avó está morta! Puta que pariu!". O ùltimo estratagema da minha mãe.

Há duas semanas a Mirtes me ligou, aos 96 anos, perguntando se havia algum perigo de que uma das araras que lhe bicara o braço pudesse lhe transmitir raiva.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Quem Disse que Não Existe Um Grande Escritor Italiano Vivo?


                                           Lendo, fascinado,  Danúbio, do Claudio Magris.

Árabes, Gregos, Espanhóis, Portugueses, Chilenos, Israelenses, Britânicos_ da Califórnia a Tóquio, Passando por Paris, Berlim, Madri e Praga

 
"O mundo só será salvo, caso tenha salvação, pelos insubmissos."
                                                                    André Gide

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Os Boatos Exagerados sobre Minha Morte

Informo a meus amigos e demais visitantes que eu não parei com o blog. Pretendo retornar até a semana que vem. Muitas coisas ocupam demasiado o meu tempo, principalmente a paternidade (embora esse seja o melhor e mais gratificante dos encargos). Também me vi engajado a um projeto literário nesses últimos dias, com uma dedicação que há muito já não achava ser-me mais possível em questões da escrita. Tudo é extremamente pessoal e não adota o cumprimento de nenhuma promessa, embora eu o faça de forma séria e disciplinada (já publiquei aqui o que tenho como sendo a primeira página, no texto Panorama 17). Meus filhos não me dão trégua: o Eric pergunta e se deslumbra numa repetição eterna sobre cada detalhe do universo (visível e invisível), e a Júlia engatinha e não quer saber mais de colo. Ontem mesmo, em uma de suas trapaças nas nossas atenções, executou um rabo-de-arraia, virando a bundinha enfraudada e foguetando a toda velocidade pelo piso da garagem, de forma que bateu a testa no chão. Chorou meia hora abraçada a mim, nos deixando constrangidos por uma das vizinhas ter vindo ver se afinal era questão de chamar o Conselho Tutelar. Estreiou o primeiro galo.
Júlia: o primeiro galinho, empoleirado à esquerda