Há alguns anos, deprimido diante ao que me afigurava ser um constante fracasso emocional, escrevi alguns cartázes de urgência com a frase”Jamais, em qualquer ocasião, magoe as pessoas!”, e afixei em pontos estratégicos pela casa. Quando retornei, ao final da tarde, encontrei-os empilhados sobre a estante, e imaginei que a moça da limpeza deveria ter sentido um constrangimento quase igual ao meu por não saber onde colocar aqueles frutos do meu esquecimento. Uma das histórias dolorosamente inesquecíveis e redentoras do meu avô, que ele a contava sempre à atenção dos constantes pedidos da família, foi quando, em uma de suas idas da fazenda à cidade, parou sua caminhoneta para auxiliar um homem que se encontrava com o carro danificado ao lado, na estrada de chão. Meu avô não se lembra que peça sobressalente de sua caminhoneta ele dispôs para sanar o avario do veículo, ele só se lembra da para sempre incompreensível resposta que deu quando o desconhecido lhe perguntou quanto havia sido a ajuda, e meu avô respondeu:”Uns dez reais e morre o assunto”. Como haveria de ser, um mês depois, meu avô se viu com o pneu do carro retalhado, em uma estrada de terra de pouquíssimo movimento, sozinho e sem macaco sob o sol a pino… e quem aparece? Para-lhe do lado aquele mesmo desconhecido, com um sorriso cordial e uma disposição de erguer o carro com os braços, se fosse preciso. Mas não foi; ele retirou seus assessórios do porta malas, trocou o pneu de aro espesso e trabalhoso, detectou que se perdera um dos parafusos e usou um dos seus. No final, diante o homem suado e sujo de terra, meu avô profere aquela já por ele intuída sentença de condenação:”quanto foi?”, ao que o homem responde:”ô compadre!, coisas assim a gente não cobra não. Somos um pelo outro.” Foi a maior vergonha da vida de meu avô, ele contava. Ele nunca desejou tanto um tapa na cara. Imagino que, numa escala continental, ele se sentiu como a companhia imperial inglesa diante todos aqueles indianos seminus sentados em posição de lotus e não reagentes, que conseguiram a independência nacional através de uma arma inédita na història: o constrangimento do lado que detêm o poder, pela súbita consciência explícita da insensata desproporção do uso do poder.
Minha preocupação constante continua sendo o de não magoar as pessoas com o que digo, por várias razões. Piegas dizer isto?é;mas não sei dizê-lo de uma forma menos convencional, menos lyaluftiniana. Ao mesmo tempo, acho salutar expressar o pensamento, com toda a afronta a enorme tendência ao senso comum que nos domina, com seu poder de atração quase irrefutável. Por isto a surpresa de, após um noite de insônia diante o micro, aterrorizado diante o passeio alucinógino por tantos endereços cheios de pretensões, vaidades, inocuidade de espírito e de intelecto, com “ensaios” literários atravessados em colunas opressivas de propaganda de varejo e últimas novidades tecnológicas (textos que sempre me lembram aqueles coitados sentados em pleno centro urbano, com um colete amarelo no qual se lê”Compra-se Ouro”), retorno ao seu espaço e vejo essa confluência cigana de medos intimamente arraigados sobre fúria, necessidade de calma, e ainda a necessidade da crença desesperada na palavra.
Vou ter um filho daqui a quatro meses, o que me faz temerosamente feliz. E a maior lição que prevejo pela frente, a passar para ele, é o exercício salutar e superestimadamente sofrível de engolir sapos, e ao mesmo tempo incentivá-lo ao contato com mortos ilustres que nunca fizeram outra coisa senão expulsar anuros a grito. Ensina-lo que a gentileza possui uma estética muito sui generis, às vezes não tão catártica quanto acompanhar aos berros “God Save the Queen” dos Sex Pistols, mas mais verdadeira e compensadora na hora de saber o valor de favores desabnegados e aceitar o dedo em riste no trânsito até que se desgaste por total inapetência a vontade onanística de matar. Por que, no primeiríssimo momento que precede à reação, nós somos uns serezinhos cruéis. Mas só nesse enorme e libidinoso momento inicial.
Para terminar, uma lembrança de uma grande palestra do Joseph Bródski ( no livro de ensaios”menos que Um”), que versa sobre a interpretação do dito “ofereça a outra face”. Bródski diz que ignora-se, a maioria das vezes, o que vem depois neste vaticínio, que é: “e se alguém lhe solicita acompanhá-lo por uma jarda,vá com ele mais cem”. E cita o exemplo de um prisioneiro de um gulag, que, oprimido por um guarda à tarefa inócua de remover um monturo de pedras de um lado para outro do pátio da prisão, o faz inúmeras vezes, durante um dia e uma noite inteiras, durante muito mais tempo que o guarda levou para se humanizar e olhar aquilo como o reflexo de seu brutal constrangimento.
(escrito em 09 de abril de 2009)