quinta-feira, 28 de junho de 2012

Três Sombras, de Cyril Pedrosa



Há muito me distanciei do universo das histórias em quadrinhos. Acho-o importante; uma das portas para o interesse da leitura. Semana passada, por influência das teorias de Walter Benjamin sobre a apreciação intelectual da criança (ele incentiva os livros em preto e branco, que estimulam a imaginação, assim como a participação da criança na arte adulta, condenando a estupidificação em limitá-la aos palhacinhos coloridos e as muitas vezes cansativas canções infantis), li Três Sombras, de Cyril Pedrosa. Constatei duas verdades: uma vez leitor de quadrinhos, a recuperação do deslumbramento juvenil diante um gibi é instantâneo; e que os quadrinhos é um gênero literário infantil por fundamento e natureza, sendo que grande parte da sofisticação advinda dos títulos dos últimos vinte anos vem justamente da competência dos seus criadores em conseguir driblar essa característica. Um exemplo notável dessa segunda observação está em Maus, de Art Spiegelman, e Watchmen, de Alan Moore: por mais que seus temas sejam adultos e contundentes, é indissociável a emanação de fábula do primeiro, e as malhas colantes dos heróis do segundo o firmam no sério dogma de que, por mais que a filosofia seja boa, a raiz sempre será as usinas de entretenimento adolescente da Marvel e da DC Comics.

Três Sombras engana os desavisados sobre o quão apurado o estágio dos quadrinhos está na atualidade. Trata-se da história de um pai que é obrigado a fugir com seu filho, desde quando o menino se vê ameaçado por três sombras que, apesar de nunca se deixarem ver senão à distância, e não externalizarem nenhuma palavra, deixam claro que o idílio da infância havia se encerrado. A narrativa parte de um vilarejo bucólico, transita por aldeias medievais com as típicas casas de altos telhados recurvos, faz sua lição de apresentar navios naufragantes com seus capitães estoicos, e retorna ao ponto de origem não sem antes vislumbrar o inefável. E o leitor desgarrado do que subjaz de originalidade sob essas fórmulas normativas acaba por se ver perdido diante o deslumbramento que uma tal aparente simplicidade tem a oferecer. Eu tive que retornar a leitura três vezes, depois que fechado o volume, para ver se havia entendido mesmo a história. O final deixa o aperto no coração e a impressão de insuficiência  que temos diante um bom filme e um bom romance. Mais não seria inteligente dizer para a segurança do deleite dos prováveis futuros leitores.

sábado, 16 de junho de 2012

Bloomsday 2012




16 de junho. Hoje é um dia especial para todos os agraciados pela leitura de Ulisses, de James Joyce. Para todos que sabem que a felicidade é continuamente encontrada nas grandes leituras. Para todos que amam os livros; que nunca foram contemplados pela exaustão ou a insuficiência diante as palavras. Trata-se do Bloomsday, o dia em que transcorreu toda a ação de Ulisses, em 16 de junho de 1904 (na verdade o final do romance pega as primeiras horas da madrugada do dia 17 de junho, fato que pouquíssimamente é comentado; mas tudo bem, abre precedente para aumentar-se o prazo da comemoração). Eu já encontrei a felicidade na leitura de muitos livros: Anna Kariênina, Os Demônios, Herzog, O Teatro de Sabbath, Longe e Há Muito Tempo, Absalão, Absalão, Luz em Agosto, A Montanha Mágica... e a felicidade que me esperava em Ulisses, em quatro dias febris de 2006, me mostrou de uma vez por todas que o maior poder da literatura é isentarnos da consciência do passar dos anos, dando-nos uma imperativa certeza da continuação da juventude. Que a leitura nos mantem jovens eu já o sabia nem que fosse pela constatação não-oficial de que doenças degenerativas pouco acontecem com leitores, ou que leitores não se suicidam com frequência, afora, nesses dois casos, as exceções da regra das últimas informações sobre Garcia Marquez, o Alzheimer da narradora de Reparação, e todos os adeptos da solução do eternamente jovem Werther ao longo dos últimos três séculos. Os velhos notórios dos quadros da UTI dos hospitais costumam serem retirados dos sofás em frente à televisão, ou de frente a janelas que dão para as sempreternas tramas de vizinhos em trânsito. E os suicidas são ocupados demais com seus desesperos financeiros para dignarem-se ao tamborete tombado sob a corda por motivos de desalento da alma.

Tenho as três traduções de Ulisses para o português do Brasil, e o livro original. Pela década de 90, tentei de todas as formas ler a do Houaiss, mas nunca consegui. Fiz fila ao grande número dos que acham Ulisses a mais empolada e leviana enganação da indústria cultural livresca, o que por si já daria um enredo poderoso para uma sátira conspiratória de empresários desvirtuados das indústrias do amianto e da exploração do diamante africano para dedicarem suas vidas a pregar uma peça em um por cento da humanidade que ainda lê. Só fui conseguir ler a tradução da professora Bernardina, no auge da aclamação do lançamento da Alfaguara. Ulisses só pode ser lido com uma atenção despreocupada. Não é um livro sagrado. É um livro divertido, fascinante, elétrico, maravilhoso. Se há uma conspiração para estragar sua leitura, ela é feita, talvez involuntariamente, pelas pessoas que o amam, quando ressaltam que sua dificuldade é hermetismo, ou que a grande força retórica de Joyce se centra em tolos jogos e fusão de palavras. Ulisses é tão difícil de se ler quanto qualquer livro de Dostoiévski ou Tolstói, nada além disso. Não é um livro destinado para 99,9% da humanidade. Como toda produção do alto intelecto, é uma obra elitista. Barram-se em suas portas os que não exercem a capacidade de atenção, os que limitam o alcance da visão para os informativos da sessão de preços e cotações de mercadoria, os intrinsecamente preguiçosos, os que bocejam em uma sinfonia de Beethoven, os doutores pragmáticos em armadilhas televisivas de danças sensuais da moda, os que se transportaram em definitivo para o universo digital. Por isso é uma data a ser celebrada, o dia de hoje. O dia da conflagração maçônica dos que tem um tesouro íntimo inigualável guardado a sete chaves. Como disse certo crítico, os livros não nos tornam melhores, mas mais ricos. Celebremos nossa fortuna.

(Seguem nos dois posts abaixo, um pequeno texto sobre Ulisses, e uma resenha sobre um bom romance sobre o Bloomsday, retirados da memoriabilia do blog.)

Pequeno Comentário Sobre Ulisses, de James Joyce




Esse é um dos livros em que o enredo é o de menos. Importa a incrível vivacidade e energia verbal de Joyce. É o anti-limite de sua superioridade como escritor acima de todos os outros_ de Mann, de Faulkner, Proust, Kafka_ que iria subir à estratosfera e se perder com o livro seguinte, o ilegível Finnegans Wake. Trata-se de uma brincadeira bem urdida, uma ciranda calculada na espontaneidade de um severo trabalho de anos, não uma tentativa, mas uma culminação do resumo do ser humano e de sua história, e um enorme deboche à febril ciência da psicanálise (se tudo que passa pela cabeça de um homem comum é simploriamente banal, é ridículo sistematizar seu comportamento contraditório numa cabala do subconsciente). Ama-se Bloom e sua esposa, ama-se Dedalus e o excessivamente extrovertido Buck Mulligan, com todos os seus pecados, suas desimportâncias, suas carências.


É o romance da falta de sutilezas, da falta de coqueteria, o romance essencialmente não-burguês (não ANTI-burguês, pois revela o enorme descaso do autor para contrapor uma reação à uma sociedade medíocre), não-científico, e, por mais que possa ser surpreendente, não-literário. Dedica-se todo à celebração da literatura, mas é anti-empolação e anti-oitocentismo. Tanto que depois de Ulisses, aboliu-se a possibilidade de escrever como Victor Hugo, Sully Prudhomme, Romain Rolland, e outros. Ulisses aboliu a literatura em diversos países, obrigando os novos escritores à adaptação. É a suprema manifestação do humor, do humanismo, da redenção velada. Uma mistura de Nona Sinfonia com a fuga da Sinfonia Júpiter, com cabrioladas de um jazz que abriu as portas para as correntes de ritmos de Coltrane e dos minimalistas. O maior mérito de Joyce foi ter controlado sua extraterrestridade para dar à obra um caráter perfeitamente legível, pois seria natural que depois de ter rompido todos os limites, seu último passo seria Finnegans Wake, assim como o passo seguinte_ o estilo tardio_ de Beethoven fosse os ùltimos quartetos e a Missa Solemnis.


Aldous Huxley lamentou que Joyce tivesse optado pela abdução. Poderia ter escrito importantes livros da estatura dos de Stendhal. Mas é compreensível. Deportou-se do mundo dos viventes. Não lhe diria nada a estranheza e prazer de incompreensão libidinosa que o mundo adotaria ao analisar as cartas singelas que escrevia para Nora Barnacle, seu amor de toda a vida. Onde revelava a leveza de seu espírito, a ralé via apenas a sujeira sexual de um intelectual reprimido. Por isso é desconcertante que achemos de uma beleza sem igual as passagens de Bloom se masturbando, de Molly cedendo-se mais uma vez com seus repetitivos sim, sim,sim, da última página, de Mulligan se atirando seminu ao mar, ao lado dos pescadores. Uma impossível beleza nesses gestos prosaicos, e uma lucidez que desmascara toda a hipocrisia, toda pompa. Uma declaração de amor à humanidade, antes de mais nada, mas uma humanidade ainda de um distante porvir, livre das tralhas da ciência e das hierarquias, e centrada no cultivo das idiossincrasias soltas e intimistas de si mesma.


Por isso que é tão espantoso a Buck Mulligan quando Stephen Dedalus revela que, no leito de morte de sua  mãe, se recusou a se ajoelhar; mas não pelo constrangimento à mãe, mas pelo constrangimento contra si mesmo. A liberdade do homem que tomou suas próprias rédeas e manda as convenções e a opinião alheia às favas…



Dublinesca





Um dos álibis que se pode alegar contra os sinais anunciados da tão aclamada morte do romance é que mesmo seu definhamento consegue servir de tema para toda a obra de um dos mais relevantes romancistas da atualidade. Praticamente todos os livros do espanhol Enrique Vila-Matas tratam da morte do romance, utilizando-se para evidenciá-la de uma série de personagens cuja reação ao avanço de uma era de iletralidade é a da abstinência criativa ou a recusa pura e simples de escrever. Vila-Matas tece um jogo curioso de referências diretas aos mais importantes escritores da literatura, de forma a fazer produzir no leitor a “doença da literatura” que incapacita espiritualmente seus heróis, mas tem o cuidado mercadológico de não incorrer em modelos muito herméticos, abrindo as janelas de suas narrativas para que o ar de dias ensolarados tenha livre acesso. Vila-Matas, pois, se presta ao que grandes escritores que se recusaram a ser objeto de fetiche de uma minoria de apreciadores especialistas fizeram para alcançar o grande público: administraram suas caixinhas de truques e surpresas de forma a serem bastante permeáveis às vendas exponenciais, e com isso, mais uma vez, reforça a duração do romance. Recheia seus enredos de sombras, chuvas, sonhos, personagens misteriosos, equivalências que supõem a mágica, viagens para aprazíveis cidades históricas européias, micro-ensaios bem estruturados sobre livros, fofocas atuais ou muito antigas sobre escritores; além de servir-se da internet para propagar os personagens cuja face impressa jura que existem mas que as consultas pelo Google revelam inventados. A astúcia desse procedimento é que o leitor, na consulta, cai na rede de fãs que o autor arrebanha pelo mundo, à semelhança dos que se descabelam na escavação de códigos nas páginas de Thomas Pynchon.

Mas engana-se quem achar que Vila-Matas é apenas um leitor cuja leitura de todos os livros não deixou outra opção que fazer-se ele mesmo um funcionário de sua memorialística literária. Como na comprovação da excelência das costureiras, pode-se perceber o grande calo profissional que Vila-Matas tem na mão em seu recente romance, Dublinesca. Trata-se das aventuras de Samuel Riba, um editor aposentado que vive para ruminar os dias gloriosos do romance, dos quais participou ativamente, mesmo sem nunca ter encontrado o jovem gênio das letras que sempre procurara, e que, como ato ritual ao que ele vê como “o fim da Galáxia de Gutenberg” e a consagração decisiva da era digital, encena com um grupo de amigos o enterro do romance indo para Dublin no Bloomsday. Desde a primeira página vemos que só sobra a Riba o encerramento tortuoso no qual sucumbem os pacientes terminais; a cada passagem de seus dias na Espanha, à espera que chegue a data prevista para a viagem, intrudam-se elementos de pesadelos tomados da literatura que não lhe possibilita saber onde prossegue a realidade e onde se irrompe o sonho. Mesmo as visitas habituais a seus velhos pais, todas as quartas-feiras, que no mais não passam de tediosas obrigações cumpridas à risca, são contaminadas pelo onírico que escapa dessas frestas do cotidiano.

Mesmo Riba sendo o que ele vê como uma versão mais velha e culta de um hikikomori, nome que se dá aos jovens japoneses que já se alienaram do mundo trancando-se nos quartos das casas dos pais e não saindo de frente do computador, pois ele mesmo sucumbe às horas pesadas de exposição ao Google, não lhe escapa a verdade de que a cada dia vai se tornando mais e mais obsoleto. Sua esposa se converte ao budismo, e, numa determinada cena em que Riba a observa dormindo, está mais jovem e possuída de uma beleza plena. Sua viagem a Dublin, a qual era a última chance de integrá-lo a algum significado de pertença_ mesmo que fosse de pertencer a um grupo que se enterrava sob um réquiem de resignação à modernidade_ se mostra, apesar da beleza da paisagem em que Riba se identifica como pertencendo ao mar da Irlanda, um completo fracasso na comunicação com os amigos.

A bela editoração da CosacNaify complementa a alusão de que Vila-Matas trata de temas profundos com uma leveza que não se corrompe por nenhuma das duas opções (deixar de ser leveza aniquilando-se na imanência das matérias tratadas, ou tornando-se superficialidade pura): a ilustração da capa, as letras grandes, a feição corporal de objeto perfeitamente comestível e um quê do requinte de ornamento de mesa de catálogos fotográficos. Mas Vila-Matas prescinde desses artifícios, ainda que eles complementem a sua arte. O livro vale por suas reflexões requintadas sobre a modernidade, sua ironia fina sobre a geração de cultores virtuais em que a maioria da humanidade está se tornando, sua prosa que não é permissiva e não faz concessões, seus resvalos gratificantes numa premonição de níveis mais profundos do discurso. Mesmo as partes que cairiam na ineficiência e no desgaste, Vila-Matas as convertem em agilidade perfeitamente convincente.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Saruê


Neste feriado recebemos aqui em casa minha mãe, minha irmã e uma tia. Vieram na quinta, de ônibus, e foram embora na tarde de domingo (elas tem muito medo de dirigir em rodovias). O clima da casa ficou totalmente feminino, com sacolas de presentes, risos parenteando fofocas, receitas de tortas holandesas sendo postas na prática na cozinha, coxas de frango assando dentro de pacotes plásticos de tempero pré-fabricado, conversas prolongadas noite adentro, com todas deitadas na cama de casal (todas mais o Eric, que diplomaticamente tinha que deixar o pai sozinho na biblioteca dos fundos e interagir com a algaravia da parte da família que vem de dois em dois meses). Eu fico muito deslocado nestas visitas, e a grande bênção é que todas não dão a mínima para mim, o que me permite uma adstringente invisibilidade. A Júlia se esquece tanto do pai nestes momentos que por vezes tropeça nos meus pés e se levanta rapidamente, tomando o rumo da balbúrdia com algum pano de mesa ou camisa suja que retirou de algum lugar e revestiu com eles a cabeça. Nesses paradoxos do caos, nesse feriado eu tive muito tempo livre para ficar comigo mesmo e botar as leituras em dia. E tive tempo de sobra para compensar certo distanciamento que vinha tendo com o Miles, e que me deixava preocupado por notar nele um recuo meio depressivo devido à minha omissão involuntária. Fiz bastante carinho nele, saímos para passear de carro e à pé, e retornamos as brincadeiras de rasgar sacolinhas e atirar objetos para ele ir buscar. Levei uma bronca tremenda da Dani por ter deixado o Miles rasgar uma revista velha que ela ainda não tinha lido, e por lançar uma bandeja de plástico que achei ter sido escorada na pia para ser jogada fora, e que o Miles destruiu em prodigiosos vinte segundos de alegria furiosa.

Na sexta-feira comprei um Gato Negro e fui bebê-lo à noite numa pracinha desolada em frente a um templo desativado da Universal. Sentei-me no banco com a garrafa aberta e com um copo plástico, e bebericava o vinho enquanto via, enlevado, o vento frio revoar as árvores e as pequenas peças de lixo da calçada. Estava absolutamente sozinho e afastado dos sons de festa de quatro quadras mais para baixo, na praça central. Estava decidido a abrir aos poucos a minha sensibilidade alterante à bebida, coisa que imaginava ter voltado à estaca zero devido aos tantos meses de abstinência_ as últimas garrafas esvaziadas me pegavam no final mais sóbrio do que  antes, atestando que ou eu avançava para novos estágios de subjeção alcoólica ou continuava a beber apenas pelo sabor das uvas fermentadas_, pois queria apreender sem pressa o que aquela noite e aquele deserto tinham para me dizer. Os altos vidros do templo permaneciam soberbamente imóveis ao vento, conservando um sobrancelhamento indiferente ao musgo que crescia a olhos vistos nas bases das paredes e das teias cinzas proliferadas abaixo da cornija da frente.

O fato desses vidros estarem intactos numa praça conhecida como Praça da Maconha deveria ter motivado o pastor desistente a reavaliar com mais fé a persistência em angariar um rebanho financeiramente viável. O próprio banco no qual eu estava sentado atestava que a turba invisível que agia de madrugada não costumava ter tanto respeito por objetos não vigiados: faltava-lhe duas traves de madeira abaixo de mim, de modo que eu estava suavemente com os glúteos afundados para baixo. No meio desse devaneamento vejo um vulto caminhando de frente ao templo. Arregaço os olhos e percebo ser um homem que poderia ter qualquer idade acima dos 60 anos. Andava furtivamente e com a clara consciência de que havia alguém ali que logo iria vê-lo, e quando entrou sem direito a dúvidas dentro do ângulo da minha visão, adotou uma atitude misto de criança e um bicho silvestre qualquer interessado em aproximação. Usava uma camisa de mangas compridas que ia até os pulsos, e uma calça de flanela desgastada, mais umas botinas bege que lhe davam ainda mais uma áurea de animal híbrido, fruto de algum cruzamento improvável que determinava que aquela hora era a única ideal para que desse as caras no mundo. Quando completou seus passos estudados em linha reta, fez uma curva rápida para a rua e veio cordatamente se sentar no banco ao lado do meu. Tudo sem me olhar; revirava a cabeça observando como se pela primeira vez as árvores da praça e eu notava o brilho prontificado na periferia da pupila onde eu estava instalado. Tinha um rosto desmaiadamente servil, que me atiçou fundamente a curiosidade. Eu não estava querendo companhia, mas algo no rosto dele, que não consegui firmar quando dava seus passos inseguros e bambeantes, me instigava. Parecia para dentro, em um primeiro momento, com alguma deformidade inapreensível. Na faculdade havia visto cães com os rostos mutilados a tal ponto que os zigomáticos e as cavidades nasais ficavam expostas, e o velho gnomo me passava essa suspeita. Mas ao mesmo tempo eu sabia que sua inofensividade era tanta que não comportava nenhum grau de tragédia mais acima de uma solidão destinada aos bobos. Lembrei de um marsupial típico do cerrado, um ratinho descabelado e maltrapilho que poderia viver cem anos devido a sua total fealdade estragar-lhe para sempre como presa, e me veio a certeza de que um saruê havia se metamorfoseado em humano  aquela noite onde o frio de desolação escondia enfim uma melifluosidade que me escapava. Vai ver o pastor fez mesmo bem em sumir dali, pois no momento nenhuma inspiração erraticamente eclesiástica me despertara para o fato de que talvez se cumpria alguma maldição divina por eu estar quebrando a promessa feita com meu rosto em as mãos piedosas de minha esposa que não voltaria a beber.

Mas tive a oportunidade de olhar o rosto do velho e constatar que o estranhismo era que seus ângulos magros me faziam associar a algo da prontificada lealdade do meu cão. Percebi que ele era bem mais velho, 70 anos, talvez 90 anos bem vividos de total humildade saruênica. Fui tomado de um mau-humor irrequieto, pensando que ele deveria fazer o favor de não perturbar senhores incautos que se aventuram em praças da maconha, nas quais nem a interseção de duvidosas forças de deus havia surtido efeito, para ficar só, inteiramente só. Eu sentia o vinho enlanguescer os caminhos arteriais até o cérebro, e me ative ao meu direito de incomunicabilidade. Cinco mulheres e um guri barulhento não haviam conseguido me tirar de meu silêncio em minha própria casa, não seria um protótipo caboclo de Smigol que faria isso. Em outros momentos adoraria falar com ele, mas não aquele hora. O velho, que também me fizera crer que se falasse notaria sua voz um tanto anasalada (um fanho e um gago numa noite solitária), contrariando as minhas expectativas, não em dirigiu uma palavra sequer. Ficou em absoluto silêncio, de braços cruzados olhando à frente a rede oceânica de sombras e ventos.

Voltei dali uma hora para casa. Quando me levantei e entrei no carro, olhei pelo rabo de olho que ele me ignorava combativamente, mas conservava uma calda de sorriso no canto da boca para quaisquer recaída diplomática de minha parte. Na manhã de sábado minha esposa me acorda no colchão de solteiro na biblioteca e diz que o pai dela estava na esquina mais longe aqui de casa, esperando que eu levasse as crianças para ele as ver. Mas que diabo, resmunguei, por que o Seu Gercino não vem aqui e entra para ver as crianças? A Dani responde que é que seu pai estava com o Seu Juvenil, e esse se negava a entrar em casa desde que viu o movimento e constatou que haviam visitas. Meu sogro, o seu Gercino, foi diagnosticado há mais de dois anos (seis meses antes do nascimento da Júlia), com um câncer terminal, que se criara em um dos rins e se proliferara para fígado, estômago e intestinos. Os médicos lhe haviam sido francos e dito que a quimioterapia só iria apressar o processo, que ele voltasse para casa, comesse e fizesse de tudo, para aproveitar os poucos meses que lhe restava. Ele ficara em profunda depressão nas primeiras semanas, chorando pelos cantos. Aceitou participar das sessões de acompanhamento psicológico do hospital, no qual conheceu o Seu Juvenil, um mulato de mesma idade que ele, que havia tido seis tumores no maxilar, devido ao tabagismo de toda a vida, e cuja excisão cirúrgica lhe levara o queixo. Tornaram-se amigos inseparáveis, ocupados em longas viagens para pescarias. Seu Juvenil era um homem curiosamente assimétrico, que afrontava a perspectiva mesmo para os mais preparados de ante-mão para a confrontação com o seu problema. A falta do queixo tornara difícil entender suas vocalizações, que eram muito abafadas e despendiam o odor de nicotina de décadas que transvertia os ares do ambiente. Meses depois da remoção dos tumores, uma nova massa compacta brotou na pequena parte que lhe restava do queixo, onde antes ficavam os dentes sisos, e crescera tanto que dera uma aparência tão mais distorcida a seu rosto que era como se tivesse saído de uma tela cubista. Isso lhe servia ao propósito de não mais parar de fumar, já que a coisa não tinha mais jeito.

Ele e meu sogro haviam alcançado um altaneiro e despreocupado grau de adaptação à doença. Meu sogro sorria, estoico, ao me relatar em sua última visita como se pode conviver bem com a doença. Ele não tomava mais água ou líquido algum há quase três anos, para não sobrecarregar seus rins deteriorados. O seu Juvenil só se alimentava de leite e bolachas dissolvidas no leite, como ensinou a Dani a fazer em sua última visita_ sendo traduzido por uma das irmãs da Dani que tem o dom quase esotérico de entendê-lo cristalinamente. Eu liguei para seu Gercino e disse que era um descabimento eles se recusarem a entrar na minha casa só porque minha mãe estava aqui. Mas meu sogro transmitia a decisão peremptória do amigo de que não iria entrar. Levei as crianças para que o avô as visse, e lá pelos tantos minutos de conversa os convenci, finalmente, a entrarem em casa. Seu Juvenil cumprimentou da varanda às pessoas de dentro, e só se levantou de seu canto em que olhava pacífica e sobriamente o tempo_ sem a mínima importância para o que transcorria em torno_ para se aproximar de mim e balbuciar uma pergunta que me lançou no mais profundo constrangimento. Eu não conseguia entender o que ele estava dizendo, além de uma única e improvável frase. Ele a repetia para mim e eu só balançava a cabeça, até que seu Gercino surgiu à porta para me salvar. "Ele pergunta se aqui tem algum banheiro externo que ele possa usar". Seu Gercino respondeu que não e o acompanhou até um dos banheiros de dentro da casa. Eu estava suado de esforço em entender o que ele dizia. A mim a frase enevoada de cigarro mausoléico e de ausência tecidual teimava em ser: "O senhor tem veneno?"

terça-feira, 12 de junho de 2012

De Novo


 Não quero aprender a viver, quero descobrir a vida de uma vez e para sempre. (Juan Carlos Onetti)

Duas Primeiras Frases Magistrais de Dois Romances Sobre Suicídio


Chegou pelos correios o tão esperado por mim Virgens Suicidas, de Jeffrey Eugenides. Estava sentado na varanda lendo-o, quando me dei conta das semelhanças de sua abertura com outro também deslumbrante romance que me caiu em mãos há pouco tempo.

Na manhã em que a última filha dos Lisbon decidiu-se também pelo suicídio_ foi Mary dessa vez, e soníferos, como Thereza_, os dois paramédicos chegaram à casa sabendo exatamente onde ficavam a gaveta das facas, o forno, e a viga no porão à qual era possível atar uma corda. (Virgens Suicidas; tradução: Marina Colasanti)

Eu não quis saber, mas soube que uma das meninas, quando já não era menina e não fazia muito voltara de sua viagem de lua-de-mel, entrou no banheiro, pôs-se diante do espelho, abriu a blusa, tirou o sutiã e procurou o coração com a ponta da pistola do próprio pai, que estava na sala de almoço com parte da família e três convidados. (Coração Tão Branco, Javier Marías; tradução: Eduardo Brandão)

O Riso da Pedra



Em sua autobiografia Nas Peles da Cebola, não é o propósito de Günter Grass fundar um novo tipo de humor identitário dos alemães do pós-Segunda Guerra, mas seu enfado estoico diante a bestialidade massificada a que o jovem Grass se entregou no Terceiro Reich poderia bem servir a isso. O Grass de Nas Peles da Cebola é o mais desencantado e desprovido de eufemismos que conservem a mínima dignidade de sua memória; não se guarda nem o direito relativamente abrigado de ser um anti-herói. Em uma narrativa que alterna a primeira e a terceira pessoa, Grass afirma sem qualquer pudor que foi sim absorvido pela comoção generalizada do amor ao Fürher, alistou-se em uma das agremiações juvenis de guerra e marchou vestido com algum dos uniformes dos ricos tons de cinza que serviram a calar a auto-crítica em uma população que ansiava por se reerguer da destruição espiritual perpetrada pelo Tratado de Versalhes. Grass fala de si mesmo vendo-se à distância temporal, menciona o jovem de 17 anos que levava seu nome como um ser com direitos associados ao Grass que ora escreve aos 77 anos.

O Grass de 17 anos, ele escreve, nunca matou ninguém na guerra, servia a Hitler mas nunca se entusiasmou a participar das grandes cerimônias populares de adoração a ele (não por algum resquício de lucidez histórica, mas tão somente por ser alienado demais para fazer frente mesmo a manifestações de fé política insustentáveis), e escapou da morte em batalha por covardia ou pela mais involuntárias das sortes. Em uma das vezes, seu batalhão se escondeu dos russos em um porão cujo teto sustinha uma série de bicicletas novas com os pneus calibrados, e seu comandante, desesperado pela fala de outros planos de escapada, manda cada um pegar um bicicleta e sair disparado pela ruela atrás da casa. O jovem Grass revela ao comandante, encabulado, que não sabe andar de bicicleta. Quer se justificar que nunca teve tempo de aprender pelas agruras da pobreza, pela falta de dinheiro e tempo de seu pai, mas o comandante o interrompe e ordena então que ele fique da janela, armado com um fuzil, dando cobertura aos ciclistas fugitivos, que assim que possível, eles voltariam para buscá-lo. Nem essa oportunidade surgida de heroísmo se cumpriu, escreve Grass, pois assim que se posicionou em seu posto com o fuzil em punhos, só teve tempo de ver a fila de ciclistas mal atingindo o limite distante da ruela de terra caindo em sequência sob a metralha dos russos. A perna de seu comandante ficou erguida por cima do guidom numa posição jocosa, e Grass pôde se salvar graças a esse sacrifício impresumido de toda sua tropa. Mesmo na velhice, Grass escreve, ele nunca aprendeu a dirigir automóveis e bicicletas, e não vê vantagem em ensinar isso a seus filhos e netos.

Esse humor de Grass, a exemplo do humor auto-depreciativo judaico, tem uma força libertadora sustentada justamente pelo que parte da imprensa mundial fez de conta que não viu ao condenar a moral do autor por ter servido ao nazismo: na total independência das boas suposições e da lúcida e por vezes cruel reavaliação  de si mesmo. Sebald, em Guerra Aérea e Literatura, salienta a quase completa ausência da literatura alemã sobre as cidades alemãs destruídas pelos bombardeios aliados. Os intelectuais alemães dividiam a crença popular subjacente de que eles mereceram as tantas cidades destruídas, e os milhares de civis mortos, diz Sebald, como pagamento pelos crimes do extermínio nos campos de concentração e pela retroagem consequente na filosofia humanista. O que o silêncio parecia dizer era: o que são nossos mortos diante todo o niilismo derrotista implantado no coração de toda a humanidade? Para se escrever sobre Dresden e outras cidades transformadas em ruínas, teve-se que esperar a imaginação sublocada de escritores já bastante exilados da imagem de teutônicos, como Vonnegut e Bernhard. O silêncio alemão revelava o constrangimento cuja história mostrava estar por detrás da origem do orgulho ferido e recalcado  talvez à espera de uma cíclica nova oportunidade de catarse, de uma nova ascensão à violência. Grass oferece esse legítimo humor pós-Hitler como consolidação do expurgo do modo de ser do alemão padrão que sobreviveu não apenas fisicamente da segunda guerra, mas que fez para si um refúgio contra a reavaliação moral, podendo estendê-lo a seus descendentes: o humor mais profundo que a complacência, que vai mais longe que o riso de suas mazelas; um humor inédito que entrelaça-se com a mais insofismável e pouco cordial seriedade de suas deformidades espirituais. Como se uma pedra pudesse rir.

O estranho é toda a reação de assombro diante a revelação de Grass de que pertenceu ao movimento nazista, como se ele não tivesse deixado excessivamente claro sua coaptação_ mesmo que efêmera_ ao nazismo em toda a sua obra. Nas Peles da Cebola está perpassado de uma vergonha sedimentada, incontornável, do fantasma  onipresente da culpa, como os insetos e pequenas partes vegetais imortalizados em seus últimos instantes de vida no âmbar, nesta outra imagem usada pelo autor no livro. E todo o livro relaciona-se ativamente com a bibliografia de Grass, afirmando com veemência, numa reação antecipada à esperada retalhação que iria obter com sua confissão aberta: mas vocês não viram os tantos indícios que estão em minha obra? não reconheceram essa vergonha na trajetória em O tambor, em Anos de Cão? Não souberam dessa extensa mea culpa, de uma vida toda, de oito décadas, nas páginas finais de A Ratazana, nas quais a ratazana mãe não concede a opção de uma nova chance de redenção para a humanidade? Não viram o que estava por detrás da não tão sutil metáfora da transposição de todos os mortos de um cemitério para sua terra de origem, em Maus Presságios? As palavras duras de Nas Peles da Cebola, sua poesia sofisticadamente vulgar, sua auto-segregação corajosa dos salões literários do bem estabelecido e moralmente aceito, ressaltam com uma força soberba o extremo sarcasmo que Grass adotou em cada um de seus livros: se vocês fingem que não veem, eu vou esfregar a hipocrisia na cara de vocês agora sem meios termos.

Quem lê Grass desde seus romances antes do Nobel não se assombrou nem um pouco com sua "confissão". Não é o caso de condenar Grass por ter se alicerçado de porta-bandeira da moral alemã dos que não se renderam ao nazismo durante toda a vida, e vir se confessar aos 77 anos. A escrita de Grass sempre foi forjada no aço, sempre distante da estética da literatura norte-americana ou das demais literaturas europeias, cultivando uma independência às formas do beletrismo ortodoxo do que vinha se fazendo nos melhores romances contemporâneos, e essa independência se revela também nas fáscias não tão facilmente descobertas do tema de Grass. O Tambor, por exemplo, para pegarmos sua obra mais conhecida, é carregado de imagens escatológicas; um romance cuja definição apropriada seria emético, com suas enguias cruas nos tempos de premonição da grande inflação, os mijos das crianças servidos de bebida obrigatória nos bullyings dos pátios de recreio; os dedos penetrantes dos pés procurando por debaixo das saias da mãe de Oskar, do amante, no refúgio de debaixo da mesa de jantar. Esse romance cheira a dejetos e panos sujos, a batata cozida em latas sobre pequenas fogueiras de petróleo. Sua primeira heroína tece a linha de não se servir como modelo a ninguém dos personagens de Grass, sendo a avó de Oskar, ao esconder um ladrão pervertido dos algozes que o caçam por debaixo de suas quatro saias. E seu artífice da sobrevivência principal é o anão Oskar Matzerath, o solitário autista social que quebra vitrines de catedrais com o grito e sustenta, em sua estatura e em si mesmo, todo um leque de metáforas da consciência moral da Alemanha. Em Anos de Cão, vemos a mesma sublevação de disformidades nas cicatrizes no rosto de um dos personagens, nas descrições sexuais cruas do buraco da Tulla, uma das primas devassas para as quais um soldado raso escreve suas cartas no front.

Essa crueza sempre foi a marca característica de Grass_ e sua escrita exuberantemente literária. Grass desfez astutamente a teoria posterior de Sebald sobre o Silêncio Envergonhado. Ele falou, gritou, da maneira como cabe aos fariseus o fazerem, comendo pelas beiradas, afirmando-se nas loquazes reticências. Há uma cena em Nas Peles da Cebola em que esse deslocamento de voz fica perene e o leitor se percebe lendo a voz do inimigo: o jovem Grass chega a um acampamento de soldados retirantes da invasão russa, e se senta junto a eles para comer gulash. São rapazes mal saídos da puberdade, contando piadas singelas e rindo, fazendo graça e sendo levianos. Nazistas. Estavam fugindo do exército responsável pela maior libertação da história do século passado. Como apraz a esse fundamental escritor, sua biografia diz mais que aparenta, e penso que o faz para gerações do porvir que tomara não nos vejam pela ótica obtusa dos que se acham sempre jovens e infalíveis.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Notícias de Gabriel Garcia Marquez



Abro meu e-mail agora e vejo um link postado ali pela Caminhante já com um título que me põe de guarda: "Que triste!". Vejo que se trata de um texto sobre o escritor que mais me coloca de sobre-alerta nestes últimos anos, por ser ele um dos criadores do qual mais me sinto perto e íntimo o bastante para amá-lo e odiá-lo na mesma medida, e por seu longo silêncio prenunciar que as coisas não andam bem no alto de seus mais de 80 anos. Gabriel García Márquez faz parte da minha vida da mesma forma que alguns de meus mais insubstituíveis amigos da vida real, e talvez até com mais proeminência espiritual devido à cumplicidade que obtive dele em tantos anos de releituras fervorosas. Nossas idades cronológicas se encontraram mesmo ele sendo quase meio século mais velho do que eu, pois quando eu tinha 19 anos e aspirava aprender a escrever bem unicamente para meu deleite secreto, aprendi com as crônicas maravilhosas de um Garcia Marquez de 20 anos que transvestia as ruas de Bogotá com a áurea mítica das ruas de Londres; quando vivi meu primeiro grande amor, foi Florentino Ariza que me servia de medida para os meus próprios vexames iluminados; quando me infiltrei de paixão pela América Latina que vicejava por debaixo dos arquétipos estúpidos da grande mídia, foi Aureliano Buendía que me revelou verdades até então inconcebíveis sobre a impossível juventude de meus avós; quando eu já partia para outras leituras e outros ídolos literários, nos idos de meus trinta anos, foi um GGM desacreditado e imitação de si mesmo que me acenava a ruptura da amizade e o distanciamento. Até na despedida eu ainda iria me ocupar por dois anos com a escrita de uma monografia na qual expus com mais emoção que devia as causas de meu recente repúdio a um senhor que envelhecia mal e cuja fama máxima lhe servira unicamente a trair seu enorme talento literário. Tanto é que, de profundo enfado, me desfiz de todos os livros que tinha dele, da mesma forma que um amante em processo de regeneração se afasta de todos os símbolos asfixiantes que quase o levaram ao crime passional. Eu havia lido tudo de GGM, cada página, cada entrevista, cada curso de literatura que sua flacidez resolveu ministrar para alunos inúteis para a literatura mas cheios da gaita em uma casa luxuosa em Cuba. Li seu roteiro de cinema, seus exercícios de ficção faulkneriana mal engendrados da adolescência, e, claro, suas magníficas três obras inatingíveis, as únicas que irão permanecer: Cem Anos de Solidão, Ninguém Escreve ao Coronel (que sempre achei a tradução literal do título de uma beleza maior que a arranjada para o português: O Coronel não tem Quem lhe Escreva), e O Amor nos Tempos do Cólera.

Há muito que meus pensamentos se dirigem a ele, na dúvida do por quê de tão longo silêncio. Minha volta à sua amizade se deu na publicação de sua auto-biografia, há dez anos, que, contudo, não traz nada de novo ao antigo aficionado, a não ser a comprovação de tudo que foi dito antes nas outras obras; mas que, como um último esforço de recuperação da juventude e do ímpeto pela escrita, ele retorna à sua musicalidade original, ainda que, por vezes, não se esconde de todo o cansaço. Depois veio o Putas Tristes, fraco e dispensável, evidenciando ser tarde para o arrependimento por ter desperdiçado duas décadas (ou três décadas, considerando que a de 1970 foi também de um retumbante silêncio) com bajulações a coronéis e arcebispos (como afirmou a respeito Bolaño). Suas tentativas tristes de recuperar a grande voz lhe outorgada sempre me lembrou o vaticínio que Hemingway fez ao mutismo definhante de F. Scott Fitzgerald, comparando o talento finíssimo do autor de O Grande Gatsby com o pó das asas de uma borboleta, que se esvai ao menor movimento. Pois GGM morreu em vida por uma ridícula acomodação a um luxo tão cruel diante a sua vaidosa cegueira de laureado, que não o permitiu perceber que sua postura pessoal passou a ser milimetricamente contrária a tudo que ele havia escrito em seus livros. Os sofás italianos de couro em sua masmorra solar em Cuba e suas roupas brancas de guru supersticioso, à maneira dos bijoteirismos caros de Roberto Carlos e Madonna, lhe transformaram numa lastimável estrela antinomínica que nada tinha de intelectual e muito de produto em franca obsolescência da mais perversa indústria midiática. Ele trilhou o caminho contrário da trabalhosa expurgação do latino americano burro e hedonista de seu livros, se transformando no oposto de José Arcádio e Aureliano Buendía: nada se via nele da bravata anti-acadêmica  e da inteligência combativa aos americanos das companhias bananeiras que se vê em seus personagens. Ele criou tipos soberbos que valorizavam o latino-americano pelo que nós somos, sem necessidade de eufemizações, mas em sua Távola Redonda ele se satisfez apenas com o que reluzia vagamente das portas para fora, confinando o amor, a guerra, os pelotões de fuzilamentos, os heróis que mandam tudo para a puta que pariu e tem a inconcebível coragem de voltarem para casa, as virgens que ascendem ao céu e as prostitutas com sonoras gargalhadas e com os sovacos com cheiro de cinzas, tudo no interior, se comprazendo a ser o velho gordo e bonachão das verdades instituídas e do mundo como nos veem as tradições preconceituosas do exterior. Em um texto sobre Neruda que ele escreveu, creio que em Doze Contos Peregrinos, o poeta chileno aparece como um inofensivo excêntrico glutão, que fica no limite do mal comportamento à mesa, que escreve poemas superficiais em guardanapos de papel que não são nem a sombra dos cantos gerais e dos vinte poemas de amor e da canção desesperada. Não uma profecia sobre o futuro iminente do próprio autor, mas um novo arremedo da antiga glória num conto insubstancial que é fácil diagnosticar o modelo bambeante e a prosa sem inspiração.

Por isso a certa tristeza ao ler o link apresentado pela Caminhante. Então, pelo que parece, GGM mal reconhece os amigos mais íntimos, mal se lembra dos detalhes mais fulgurantes de sua longa vida de glórias e feitos nem um pouco desprezíveis. Meu grande herói não passa, trocando em legítimos miúdos, de um senhor para quem só se pode dirigir a mais pavorosa sensação de pena, por sua prostração e sua evidente condição humana. Qualquer pensamento mais acurado do que este, qualquer crítica mais acentuada, e nos cai em cima a culpa do dever de respeito aos que deixaram há muito de ser uma entidade fulgurante e se tornaram convalescentes da única e paciente resolução natural. Mas isso não me afasta a lembrança desagradável de Herman Hesse, em Lobo da Estepe, acusando Goethe de ter morrido com a perigosa idade de 83 anos, ou Thomas Bernhard fazendo seu narrador dizer, em O Náufrago, que é uma abominação viver  mais que 50 anos. Ou da viúva de Maiakóvski pondo fim em sua vida já quase aos noventa anos, enfadada de tanta vida. Ontem mesmo estava lendo no banheiro o primeiro volume de Textos do Caribe, do GGM de 19 anos, um livro que eu vendi e recomprei incontáveis vezes, que eu amava nos tempos do colégio, me tornara indiferente em meus tempos de estudante de jornalismo, que foi exemplo de escrita criativa e logo se transformou em peça de literatura de terceira qualidade, mas que há alguns anos se estabeleceu definitivamente como uma coleção dos melhores e mais magníficos textos escritos pelo colombiano, por serem cheios de vida e extravagantemente saudáveis de tanta fé na escrita, de serem inexauríveis e ilimitados em suas falhas e grandiosas insuficiências. Coloquei esses dois volumes de crônicas do jovem GGM entre as minhas consideradas grandes obras do autor. Muitas vezes em minhas confabulações com meu velho amigo GGM, eu o exortava a parar com aquelas empolações cheias de equilíbrio perigoso que o Nobel o fez mutilar a sua escrita, e retornar ao fôlego destemido e sem preocupações de errar dos Textos do Caribe. Um exemplo: depois de um de seus melhores textos, que trata de um dissidente de uma família de sapateiros que opta por ser trombonista, publicado em El Herald, o jornal provinciano para o qual ele escrevia sem falta todos os dias por cinco anos, GGM escreve no dia seguinte pedindo desculpas pela falta de sentido e desconexão de ideias do texto anterior. Tudo num humor leve, na certeza da própria autosuficiência da juventude. Deixe essas palavras medidas em excesso dessas porcarias de grife que você escreve desde o Amor nos Tempos do Cólera, e volte a escrever como em seus vinte anos, no tempo em que você não se preocupava em ser inimigo dos advérbios. Você anunciou que dali para frente, depois do Nobel, nunca mais usaria advérbios, mas lembre-se que há no mínimo um deles em cada página da saga dos Buendía.

Para escritores como Hansum, Saramago, Céline, Philip Roth, Bellow, Tosltói, Llosa, a escrita é uma febre que nunca se cura. Para GGM, nós que o amamos e de certa forma sempre nos sentimos órfão dele, a adaptação convida e reavaliar o que para sempre se confinou nos porões do mais remoto passado.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

E. M. Cioran II





Sem Bach, a teologia seria desprovida de objectivo, a Criação fictícia, o nada peremptório.
Se há alguém que deve tudo a Bach, é seguramente Deus.


(Meu agradecimento ao Cassionei Petry por ter me apresentado esse cara)

E. M. Cioran



Dever da lucidez: chegar a um desespero correcto, a uma ferocidade olímpica.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

O Amor



“O amor, em virtude de sua paixão, destrói o ‘entre’, esse espaço que nos relaciona com outros e nos separa deles. Enquanto dura seu encanto, o único ‘entre’ que pode inserir-se no meio de dois amantes é a criança, o próprio produto do amor. A criança, esse ‘entre’ com que os amantes agora estão relacionados e mantêm em comum, é representativa do mundo onde ela também os separa; é uma indicação de que eles inserirão um novo mundo no mundo existente. Por meio da criança, é como se os amantes retornassem ao mundo do qual seu amor os expeliu. Mas essa nova mundanidade, resultado e único final possíveis de um caso de amor, é, num certo sentido, o final de um amor, que deve superar novamente os padrões ou ser transformado em outro modo de estar juntos. O amor por sua natureza não é mundano, e é por isso — não por raridade — que é não apenas apolítico, mas antipolítico, talvez a mais poderosa de todas as forças antipolíticas humanas.” (A Condição Humana, Hannah Arendt. Retirado daqui)

domingo, 3 de junho de 2012

Velho Demais para Ler Romances, Jovem Demais para Morrer


Em recente post no site da Companhia das Letras, a escritora Carol Bensimon tentou colocar em suspeição o tempo de validade do romance. Como se não bastasse o filão de textos que questionam a relevância desse gênero literário distribuído como praga pelos universos acadêmicos, a  autora usou todo um tom de coisa nova ao ressaltar a já batida afirmação de Philip Roth de que não lê mais romances e que o romance está mesmo fadado a desaparecer. Em substituição a ele, melhor ler-se biografias, livros de viagens e ensaios de história. Aí a Bensimon solipsisma com ar de guerreira estoica das letras ao insinuar: "será o romance uma arte imatura?". Pois se a leitura de romances pode requerer uma energia apaixonada aos 20, 30 anos, e definhar por completo  aos 60 em diante, então_ conclusão que torna todo qualquer requinte matemático que queira ir além das mais prosaicas somas algébricas uma completa perda de tempo_, é passível acreditar que o romance só funcione quando pega por nosso lado adolescente, sonhador, inconformado, dissipativo, aventureiro; nosso lado, trocando em miúdos, tolo. Daí a latente e incontornável imaturidade e a paciência típica da juventude em dedicarmos dias na leitura de meras histórias inventadas, de sentimentos pré-criados em situações padrões fantasistas. Coisa séria e produtiva, que justifique nossas cãs depostas em solene atenção por sobre uma poltrona ao lado de nossos chinelos de feltro da velhice, é o que está nos livros da realidade verdadeira, da matéria testada e validada pela experiência. Como sempre, o texto de Bensimon é sucintamente eficaz para os moldes de leitura ligeira do blog da Cia das Letras, e se finaliza com as gracinhas de ideias rimadas características do humor sofisticado dos jovens talentos das letras nacionais, dando a aparência de que a autora já leu toda a produção romanesca e do alto de suas três décadas de vida (imagino, não sei quantos anos ela tem), pode dividir o suspiro de profeta não muito sofrido que observa por sobre a ruína de um Philip Roth setentão cujos olhos já vararam noites pelas linhas da tradição da narrativa ficcional. Tal texto da Bensimon me lembrou uma antiga parábola do Gibran em que um rapaz se observa no espelho e vê inúmeras semelhanças entre ele e gênios da humanidade, e, no final, cai na cama para um sono de profundo cansaço. 

Se quero uma interpretação do destino da narrativa nos tempos modernos (a narrativa que engloba a multitude conceitual que o romance alcançou), pego pelos ensaios imprescindíveis de Walter Benjamin no volume um de suas obras escolhidas publicadas aqui pela editora Brasiliense. Não à toa admiro muito autores reclusos em si mesmos como Imre Kertész, Cees Nooteboom e Sebald. Na interpretação de Benjamin, o definhamento da narrativa vem de uma causa que é justo a oposta do apressado e bonitinho diagnóstico de Bensimon: desde que a técnica da arte largamente reprodutível para as massas impôs o critério da distração como apreensão estética, em detrimento do antigo recolhimento, o milenar ciclo de experiências humanas passadas de geração a geração desde as histórias mnemônicas até os mais avançados romances do século XX se encontra em decomposição. Decompõe-se porque os poderes da concentração se decompõe. Numa imagem belíssima, Benjamin nos lembra que a arte elevada veio da aspiração à transcendência que extrapolou o terreno religioso e alcançou uma estratosfera filosófica em que a simples palavra, a simples pincelada, o simples bloco de pedra da escultura, é um procedimento da vontade individual e solitária por ir além, por enlarguecer os limites permitidos da expressão: as esculturas nos tetos das igrejas medievais ficavam fora do ângulo de visão dos de baixo; as vênus eram cobertas com cobertores para não serem vistas; os textos eram escritos em línguas mortas sem a mínima preocupação se haveria para eles destinatários; a arte, em suma, era feita para ninguém, era um constitutivo divinatório que em sua reserva orgulhosa dava permissão de entrada para os suficientemente recolhidos. Olhar de baixo as estátuas veladas das catedrais era aprender a sua potência sugestiva, era dividir com o artista uma parte de seus presságios místicos, era fazer-se de si mesmo um sensor artístico. A narrativa se atrofia por atrofiar nos humanos programados pelas rotinas da velocidade técnica a capacidade de acreditar. 

A narrativa é tão incomensuravelmente madura e fundamental para as estruturas da civilização _ a civilização infinitamente transformada da qual Benjamin se deportou não de todo por livre vontade em 1940_, que ela forma o nexo causal imediato que une o velho em seu leito de morte com o jovem em seu longo caminho a percorrer na conquista de seu espaço no mundo. A narrativa conservava a atenção sagrada e respeitosa que fazia o jovem levar a sério a experiência do patriarcalismo que desaparecia materialmente mas não de sua trabalhada memória. Benjamin relaciona a narrativa ao conhecimento que o narrador e o ouvinte_ o escritor e o leitor_ possuem da morte. O narrador se recolhe conformado em seu momento de espera pela morte, e começa a contar. Aqui vemos um ponto de conexão entre Benjamin e Octávio Paz, que escreveu em O Labirinto da Solidão a diferença entre a senhora postiça norte-americana, cujo Mercedes e o apartamento fartamente mobiliado a desvirtuam da ideia da morte, a insere numa dimensão placebante de eternidade em que a palavra morte é sumariamente proibida, e do mexicano padrão cujas festas de comemoração à morte perfilam símbolos da morte por todos os lados, esqueletos dançantes, fotos de defuntos em caixões, a Llorona e o Machucador. Não gratuitamente que um dos bastiões onde a arte da narrativa ainda mantêm seu grau de novidade em pulsão são países latino-americanos onde a técnica, para o bem ou para o mal, se encontra em descompasso com o frenetismo globalizante através da barreira persistente do subdesenvolvimento (fazendo por aqui o atributo das narrativas fantásticas das aldeias judáicas no cenário de demônios e curandeiros dos povoados colombianos, bolivianos ou trinidadenses).

Por isso gosto muito de Kertész, Nooteboom e Sebald. É realmente maravilhoso ler um romance como O Fiasco, de Kertész, onde a exigência de recolhimento é tão imperativa como se o autor estivesse suspenso no tempo em uma era cuja refração de luz é medida em decímetros cúbicos e não milhões. Ouve-se com respeito profundo o que o velho ali escreve naquelas páginas secretas não por ordem do sarcasmo ou da diatribe mal humorada, mas pela rica solidão do homem que tem uma experiência a ser conservada a quem se predispor a convergir-se para aquela afável lentidão, aquela estranha beleza. Ali os valores da humanidade repetidos em sonoridade estoica, pacientemente, com incrível energia. A preocupação de butique da Bensimon se vai estar, na velhice, plantando hortaliças em vez de lendo romances, revela o quanto sua juventude está disposta a durar mesmo contra as evidências da degeneração natural do corpo.

sábado, 2 de junho de 2012

Outras Capas de Álbuns Antológicos

Para afastar a áurea do último post, um postezinho estilo isto aqui não passa de um blog. Estou demasiadamente ocupado com trabalhos e estudos por esses dias, daí a falta de tempo de escrever alguma coisa com mais substância. Mas logo a rotina de textos mais contundentes (ao menos subjetivamente contundentes) volta, assim que me desafogar um pouco. Os álbuns que se seguem também são mais que as capas: fomentaram boa parte de minha personalidade e de meus gostos estéticos, e, muitas vezes, salvaram minha vida (devo muito a superação do martírio de uma gagueira prostrante à terapia do rock: vocês não sabem o quanto Ian Anderson, Jim Morrison e Robert Plant são muito mais eficientes para correção de transtornos traumáticos na adolescência do que todo um grupo de fonoaudiólogos, psicólogos hipnotizadores e mesmeritas freudianos). O do Radiohead me pegou no fim da casa dos vinte anos, e não ofereceu uma catarse tão determinante da cura, mas sua capa é uma das mais enigmáticas e belas que conheço. Lá vai:

Radiohead_ Amnesiac

Nas aulas de filosofia que eu ministrava num colégio particular, para afastar o marasmo mental que matérias sérias da área provocavam naquelas mantes ociosas, propus certa vez que a turma interpretasse essa maravilhosa capa do Radiohead. Ainda vou pagar os olhos da cara por uma ampliação de qualidade dessa capa para pendurá-la na sala minúscula de meu escritórios nos fundos da casa. O desamparado homúnculo chorando por sobre um livro de lombada rasgada (excessivamente lido), a conjunção estrelar de seu destino rondando-o como um horóscopo programático, e o título estarrecedor... Não é o melhor disco do Radiohead (sou um dos que acham Ok Computer e In Raibows insuperáveis), mas essa capa é uma obra-prima que vale o investimento. A propósito, as respostas dos alunos para a interpretação me mostrou que nem tudo está perdido: estamos avançando para um destino de alienação e fraqueza dos poderes de concentração que não dispensa uma estranha criatividade.

Organisation_Orchestral Manoeuvres in the Dark

Não à toa esse álbum tem uma capa que parece de música clássica. Quem não conhece o OMD, mas assistiu ao Valsa com Bashir, deve ter se perguntado de quem é a música entusiástica da cena do barco. Pois bem, é Enola Gay, uma das músicas pop mais geniais de todos os tempos, e que é a abertura de tirar o fôlego desse disco. O restante do disco se compraz de sua classicitude e se adéqua perfeitamente ao clima soturno e de recolhimento da capa. Todas as nove faixas são excepcionais. 





Who`s Next_ The Who

Eu sou devoto de Pete Townshend. Se me fosse dado escolher um avatar na minha juventude, seria a do líder do The Who. Sua letras são verdadeiras demonstrações do quanto letras de rock formam uma categoria própria de literatura. Mesmo no declínio de criatividade, lá para o final dos anos 70, ele escreveu algo tão lindo e profundo como a letra de It´s Hard. Mas em Who`s Next, de 1971, tudo é brilhante e altamente inspirado, tudo é eterno, desde a originalíssima mistura da mais elegante auto-consciência do papel do niilismo na juventude com uma estrutura da música minimalista americana, em Baba O´Riley, até a saga incomparável de Won´t Get Fooled Again. E a capa com os quatro mijando no monolito de 2001, Uma Odisséia no Espaço, me impressiona por tudo que sugere ainda hoje e quando eu estiver lá pelos meus 97 anos, finalmente lendo Grande Sertão: Veredas.

Unknown Pleasure_ Joy Division

Essa capa magnífica, em negro, sem indicação alguma de nomes, e com a pressagiadora e angustiante criptografia matemática dos últimos sinais de vida de uma estrela, traz no interior algumas das músicas mais lindas e demolidoras já produzidas. Não há quem não reconheça desde a primeira linha de baixo de que se trata de uma obra-prima, por mais que se seja avesso ao estilo. Um crítico, poucos meses antes do suicídio do vocalista Ian Curtis, já urucubaquisou tudo ao dizer que era a mais perfeita trilha sonora para se matar que já escutara. Não à toa se vê exaustivamente tal estampa reproduzida em camisas de magricelas nerds com as caras cobertas de espinha e os cabelos ensebados. Eu tive uma e a usei mesmo com um buraco do tamanho de um punho debaixo do sovaco. É um dos discos mais ouvidos pela galera aqui de casa, enquanto brincamos com blocos de montar esperando mamãe trazer as torradas com queijo e orégano, e o suco de cajá.

Morrison Hotel_ The Doors

Meu disco preferido dos Doors. Conheci-o aos 15 ou 16 anos, quando estava no carro de um amigo meu atulhado de outros adolescentes, e que enquanto andávamos por uma cidade interiorana o som do toca fitas transmitia essa magia singela que na época me deixou de queixo caído por sua leveza e força. Então essa é a contrapartida americana aos Beatles, pensei. Naquela época era coisa de rico importar um vinil destes, e esse amigo o tinha e o gravou em cassete para mim. Minutos depois dessa descoberta, o mesmo amigo nos levou para uma estrada vicinal e, num comboio de outros carros lotados de jovens, cerimoniou um ciclo de cavalos de pau a altíssima velocidade até de madrugada. Eu estava bêbado, assim como todos os outros, e ria igual um louco, enquanto abaixávamos as cabeças e nos segurávamos onde tinha para se segurar. No ano seguinte, em que não pude ir passar ali as férias do colégio, aconteceu a hoje histórica tragédia  da cidade de Jaraguá, em que todos esses amigos morreram na sessão de proezas a alta velocidade pelas mesmas estradas. Bem aventurados nós que sobrevivemos à juventude! Mas eu tinha um surrado casaco de feltro igual a um do Morrison, e os cabelos compridos...

Ummagumma_ Pink Floyd

Uma das capas que perdeu em muito com a transposição do vinil para o cd. Alguns anos atrás lançaram uma coletânea dupla da banda usando a referência dos símbolos dessa capa. No vinil, o álbum se abre para uma foto central também muito bonita, da banda de frente a um caminhão cheio de caixas de som. Contém o melhor disco ao vivo do Pink Floyd, com quatro faixas viajandonas, e um outro disco com experimentações individuais de cada integrante da banda não muito entusiasmante. Como as músicas começam muito lentas, na minha primeira audição tive que colocar o volume no máximo. Recomendo veementemente que não façam isso, principalmente na faixa Careful with that Axe, Eugene, em que lá pelos 9 minutos de quase silenciosa e envolvente atmosfera, Roger Waters dá, de súbito, o mais aterrorizante grito já registrado da história. O zelador do prédio onde mora minha mãe, o saudoso Zé (que morreu, infelizmente, no sábado passado), interfonou de imediato para mim, pois os vizinhos acharam que enfim o adolescente sorumbático havia cumprido o que todos os prognósticos apontavam.

Every Good Boy Deserves Favour_ The Moody Blues

O Moody Blues foi o mais comportado dos grupos de rock progressivo. Se fosse compará-lo a um escritor, seria Bruno Schulz. Mais uma vez a capa reproduz fielmente as músicas, com sua estação na infância e  nas nostalgias místicas a ela atribuída. Um amigo definiu bem a maneira ideal de se ouvir esse belo álbum: apagando-se as luzes, deitando-se no tapete do chão, em disposição de total relaxamento.






Fruit Tree_ Nick Drake

Nesta caixa está tudo já gravado por esse compositor e cantor inigualável. Eu a tinha em download FLAC, em 320 kbps, e finalmente a comprei na metade do ano passado. Devo um post exclusivamente para falar o quanto essas músicas me tocam. Walter Benjamin cita um poeta que disse que para cada homem existe uma imagem que faz o mundo inteiro desaparecer. Pois a música de Drake faz o mundo desaparecer para mim. Convido a qualquer um a ouvir Northern Sky e resistir a uma lágrima fugidia. Ainda pairam dúvidas sobre o suicídio de Drake, e um dos que contestam essa causa de sua morte usa o argumento de que quem compôs uma canção tão cheia de deslumbramento pela vida como Northern Sky jamais se suicidaria. Vou deixar para falar mais dele num texto futuro. Ao contrário do post irmão anterior, esses discos não estão dispostos por ordem de relevância pessoal. Esses quatro discos estão entre os dez melhores de todos os tempos. Lembram da cena em que um dos filhos Tenembaums coloca a agulha sobre um vinil antes de mais uma tentativa de suicídio malograda? Lembram da música sublime que arrepia os cabelos da nuca no grande salão escuro e gelado do cinema? Drake:

Fly 
Please give me a second grace
Please give me a second face
I've fallen far down
The first time around
Now I just sit on the ground in your way

Now if it's time for recompense for what's done
Come, come sit down on the fence in the sun
And the clouds will roll by
And we'll never deny
It's really too hard for to fly.

Please tell me your second name
Please play me your second game
I've fallen so far
For the people you are
I just need your star for a day

So come, come ride in my street-car by the bay
For now I must know how fine you are in your way
And the sea sure as I