Levo um livro de Primo Levi para o apartamento onde está internada minha esposa, na crença ilusória de que poderei lê-lo confortavelmente durante a noite, enquanto ela dorme. O apartamento é acolhedor, tem um ar-condicionado eficiente, uma pequena sacada de onde se pode ver os prédios de luxo, silenciosos, que circundam o hospital, e dois quadros nas paredes, um uma reprodução de Renoir e o outro de um pintor inglês que não consigo identificar. Há quadros por todas as paredes do labiríntico hospital; no extenso corredor circular pelo qual se passa, subindo os andares, para se chegar ao quarto, há cópias dos afrescos da Capela Sistina, e vários outros quadros renascentistas; a impressão é de que uma genérica intenção de piedade veiculada ao resguardo de uma força deística sobressai por sobre a coerência de um gosto artístico, como se o diretor da instituição tivesse dado liberdade aos funcionários em decorar as paredes e estes houvessem entrado em acordo sobre um senso comum estético, mas que teve a ponderação de não cair em um evangelismo pejorativo. Os quadros são ostensivos na medida certa, não fazendo ao passante se esquecer que se está em um lugar onde existe muita dor, sofrimento, lágrimas, mas também a adstringência da esperança e um sossego genuíno, contra o qual ninguém ousaria investir; chego a cogitar que a presença deles ali satisfaz plenamente a função da arte: de algum modo, eles me acalentam ao me fazerem pensar neles enquanto as enfermeiras entram para dar os comprimidos à Dani. Estranhamente, há dois quadros de artistas modernos logo no final do corredor, quando se está para sair pela porta da recepção; parece que um sarcasmo isolado quis colocá-los ali, onde a curva privilegia a sombra, ao contrário das obras mais acima que são tocadas pela luz natural que vem da incidência do sol em um arranjo tricúspide do teto feito de vidro colorido. Em um dos quadros vejo um porco negro, garatujado da maneira propositalmente tosca da escola moderna indeterminada da qual o artista faz parte_ um porco negro sobre um fundo ocre vazio, perpassado por algumas linhas. O outro quadro, que não me dediquei a espiá-lo com atenção, parece ainda mais abstrato. Deve ter algum profundo significado místico, alguma intrínseca mensagem estoica, penso, analisando que a plasticidade dos quadros não parece identificar que são os originais, que não se fez um favor a um sobrinho desenhista de um médico; deve ser de um artista de renome. Comento sobre essa profusão de quadros com a Dani e ela diz que o hospital é religioso, que veio-lhe um pastor conversar com ela, no momento em que estavam ela e a mãe, mas que em momento algum se ouve a citação específica de vertentes religiosas. Pergunto um "como assim? Não dá para saber se são católicos ou evangélicos?", e ela me responde que mal dá para saber com certeza se são cristãos. Isso me atiça a necessidade de perguntar mais sobre o que falara o pastor, mas ela está cansada, não pode falar muito, deve guardar o repouso, e eu me resigno.
No dia da cirurgia, havia um pianista na sala de recepção executando peças que meus ouvidos moucos prejulgaram serem de Schubert. Ele estava em uma ala interna de onde os pacientes ficam esperando suas senhas aparecerem no painel eletrônico, e eu fui procurando-o na raiz do som como quem quer provar para si mesmo que não está sofrendo de um ataque repentino de alucinação auditiva. Lá estava ele, diante um piano que parecia monumental na total inesperabilidade de se encontrar algo assim em um hospital, em um espaço retilíneo secundário pequeno, com cadeiras de espera de contra as duas paredes, no qual só havia uma velha senhora sentada mas que mal parecia se dar conta do homem de terno concentrado nas teclas à sua frente; um lustre elisabetano gigantesco de um dourado fosco, antigo e falso, estava pendurado bem acima do pianista. Sentei-me afastado da velha e do pianista e fiquei escutando a música, enquanto uma equipe médica abria a caixa torácica da Dani e lhe implantava uma válvula mitral de tecido orgânico no coração. Reparei que logo atrás do piano tinha uma lanchonete; só faltava vir uma moça de sainha colante me oferecer uma dose de uísque. Era assim a forma da administração de retirar o estigma relacionado a um hospital? Quadros, Schubert, um desvio sutil de percepção do classicismo retumbante do dia da Criação para a trivialidade deslocada de um porco negro que vigia toda pompa exagerada das sombras do labirinto circular. Um humor que se degrada em todas as escalas de peso, que não se presta ao riso por ainda estar-se preso conceitualmente à história dos palácios de amputação e confinamento da idade média, às quarentenas, as sangrias e os choques elétricos do que veio a se tornar quatro séculos mais tarde, mas que oferecia uma mudança radical de visão quanto à doença e o doente. Era uma outra comunicação que se fazia ali dentro, deportado do mundo lá fora_ o mundo em que, duas quadras ao lado do hospital, vimos, ao passarmos de carro, duas viaturas da polícia chegando para conter um tumulto diante um clube de futebol em que os torcedores, notoriamente difundidos pela imprensa como violentos, começaram a quebrar as janelas do clube e partirem ruas acima subindo nos jardins dos edifícios, tudo porque ocorrera alguma divergência quanto às trocas de quilos de alimento não perecível por ingressos da partida programada para o domingo. Eu recebia todo esse cuidado de forma impessoal, e só mais tarde viria a pensar nessas coisas; naquele momento eu só via, acriticamente, passivamente, um homem ao piano, executando uma música que parecia alta demais mas que nem disso eu me dava conta como algo proibitivo; nessas horas eu já me entendia como alguém que opta por um anestesiamento que, se acionava as enzimas eufemizantes certas para me narcotizar do andamento da realidade e propulsionar o tempo rapidamente para frente, não me impedia de tentar ler no semblante das enfermeiras que entravam na sala algum indício de tragédia, algum comunicado delicado que deveriam dar de forma lamentável mas imediata ao homem que estava sentado a um metro da velha e no outro extremo da hipotenusa onde estava o pianista. Meu cérebro não parava de trabalhar, por sob a narcose em que se transformara a pressão: em que nível aquelas pessoas estariam acostumadas com a morte para se poder ver algum traço de choque em seus rostos? A enfermeira que acabara de entrar, rindo e falando algo para uma das moças da recepção, saberia algo determinante para a minha vida?
A Dani passou três dias na UTI. Ela já é carimbada em suportar o terrível, sufocante e absolutamente cáustico ambiente da UTI. Quando saiu para o apartamento, sua mãe a acompanhou na primeira noite. Nas duas noites seguintes, foi a minha vez. Eu com o meu livro de Primo Levi nas mãos, que não pude ler nem a capa. O sofá do quarto, em que tem que passar o acompanhante, parece ser diabolicamente feito para impedir que se durma. É pequeno, e quando se consegue se ajeitar para descansar o corpo, a trave de madeira matematicamente situada abaixo do couro pega em alguma região letal das costas, independente da estatura que se tenha, que impossibilita o sujeito de andar normalmente pelo resto da semana. E mesmo que fosse uma cama king size, a Dani acordou várias vezes durante a noite, querendo mudar de posição na cama ou se sentar na poltrona para aliviar as dores e a falta de ar, e era de todo inviável que um de nós dois dormíssemos. A Dani mostrou uma alta resistência; ela tem 32 anos, mas passou apenas 3 dias na UTI, sendo que uma garota de 19 anos, que passou pela mesma cirurgia, teve que ficar por um período maior. Ela me disse isso sem o mérito mesquinho da competição entre convalescidos, apenas para se reconfortar de que as dores que sentia eram a parte mais desagradável, mas também a mais inofensiva do processo. Ao amanhecer, enquanto ela se esforçava para tomar um pouco do café insosso do hospital, ouvimos o silêncio ser violentado por uma voz feminina que vinha do corredor. Julguei que fosse alguma enfermeira desavisada e inconveniente que relatava algum evento festivo de seu final de semana, pois a voz era eufórica, começava baixa e trêmula e explodia em uma espécie de síncope que tinha algo de maníaco. Era como se houvesse um bêbada lá fora, mas que estivesse no período final da embriaguez para ser apenas constrangedor. Abri a porta e vi que se tratava dos gritos de dor de uma moça que dava seus primeiros passos fisioterápicos após a cirurgia, amparada por uma enfermeira. A dor era tão grande que não havia expressão vocálica que a comportasse, daí ser um grito cubista, que trazia um acento equivocado de alegria. A moça era uma loira muito bonita, usava saia jeans, deveria ter uns 25 anos. Todas as portas estavam abertas e haviam inúmeras pessoas saídas delas para vê-la, as portas que até então ficavam indevassavelmente fechadas e não deixavam adivinhar que havia pessoas atrás delas. A Dani identificou a moça como uma que estava na cama de frente à dela na UTI, que a enfermeira lhe havia dito que sentiria dores escruciantes pois abriram-lhe do lado, separando as costelas, para chegarem até o coração. Quando a paciente é aberta afastando-se as costelas, as dores são terríveis, havia gente que pedia para morrer atrás de alívio. A Dani foi aberta pelo esterno, o que acarretava menor sensibilidade pós-operatória. Acompanhei a Dani em seus pequenos passos pelo corredor, para trazê-la de volta logo pois suas vistas se escureciam de fraqueza. Durante a noite, mais uma vez, ela se levantava, se sentava, tornava a se deitar, ia continuamente ao banheiro sob o efeito do diurético.
Voltei para casa, a Dani teve alta e se encontra na casa da minha mãe. Vai ficar lá até o final do mês. Volto para lá na segunda-feira. Quando cheguei aqui, li em dois dias o livro do Primo Levi que o cotidiano do hospital me impossibilitara: É isto um homem? É um livro único, espantoso, poderosíssimo. Vou escrever sobre ele na semana que vem. Ele reforça a teoria de Tarkóvski de que a verdadeira força está na fraqueza, na fragilidade, na vergabilidade. Sua progressiva luta para se manter com uma filigrana do patrimônio espiritual do que constitui por milênios o homem é devastadoramente revelador. Por mais que pareça impróprio relacionar o tema de Levi ao que eu vi no hospital, ainda assim as evidências de uma mesma experiência de se chegar à verdade, símile entre um campo de concentração e uma UTI, me parecem válidas. Ontem comecei a ler um livrinho da Susan Sontag que tomei emprestado de um amigo, sobre o a doença e sua metáforas. Há um preconceito forte contra os doentes. Há o temor instintivo que meus filhos sentem quando fomos ver meu primo convalescido em sua casa, e que eles passaram a identificar relacionado ao cheiro de remédios que vinha do quarto. E há o preconceito estúpido, egocêntrico, bestial, do adulto que se anuncia em vantajosa oposição na escala da sobrevivência diante uma pessoa fragilizada pela doença. Desde que foi anunciado a necessidade da cirurgia da Dani, vimos diferentes matizes dessa segregação do doente acontecer com nós. Sontag trata, de maneira brilhante, sobre os estigmas que sofreram os tuberculosos no século 19 e começo do 20, e que sofrem os pacientes com câncer hoje e sempre. Mas esse estigma ocorre com todas as doenças, em maior ou menor grau, e ainda mais quando se trata de uma cirurgia cardíaca. Um conhecido meu, quando soube que a Dani passaria pela cirurgia, veio falar comigo e era todo cheio de uma hipócrita piedade, que mal escondia uma espécie de alívio, uma quase felicidade por detrás, um ponto de referência para valorizar o quanto sua vida era agraciada e profícua, o quanto o fato de ver o que para ele era a nossa desgraça salientava que ele e sua família eram seres abençoados.
E nisso se estabelece o que para mim é o maior atraso da questão: esse raciocínio exultante de sobrevivência remete sempre a um enjoativo e repelente deísmo meritocrático. Na página do Facebook desse conhecido, logo após essa nossa conversa, aparece a frase "nem tenho como agradecer a Deus por nos conceder tantas e tantas bênçãos", e a foto dele com sua esposa grávida já de três meses. A estultície de sua alegria é tão primária que o cega diante o fato de que nós temos dois filhos e a deficiência da válvula mitral da Dani se manifestou durante a gravidez, e que 90% das pacientes do cirurgião cardíaco que operou a Dani são mulheres que tem o mesmo perfil da minha esposa: tiveram reumatismo na infância e que, por alguma associação patológica, são perfeitas do ponto de vista coronário e poderiam continuar o sendo durante toda a vida, desde que não engravidem, mas que, se engravidarem, a doença se manifesta pela insuficiência da válvula mitral. Várias vezes eu tive que sair para passear com o Miles Davis, enquanto grupos de oração de várias denominações religiosas, que nem sabiam que nós existíamos, vinham fazer uma visita e orar para a Dani, depois que haviam sido informados que Deus precisaria ser reconduzido com maior apuro para um lar que, na falta desatenta Dele, resultou nisso, na moléstia, na danação, no expurgo físico e doloroso. Levi era apontado pelos outros prisioneiros de Auschwitz, na estranha hierarquia do campo, como "muçulmano", alcunha dada àqueles recém chegados que tinham tanta desprovidão de talentos e ausência total de indícios corporais de força e astúcia, que eram tidos como os primeiros a serem conduzidos para as câmeras de gás. Eram magros, com caras estúpidas, retraídos, fora do comum ou comum demais. Não pertenciam aos mais adaptados, preparados, aos mais astutos, ferinos e selvagens.
Em uma cena inesquecível, Levi relata a volta de todo o seu grupo de 200 pessoas para o pavilhão, após terem passado pela seleção de quem iria para o crematório no dia seguinte e quem havia sido temporariamente poupado. Alguns dos que haviam sido poupados se refestelavam no chão agradecendo a Deus pela benção, sem a menor consideração de que de frente a eles estavam os que seriam mortos logo pela manhã e mal tinham a metade de um dia sequer de vida. "Se eu fosse Deus", escreve Levi, "cuspiria fora a reza deles". Assim me pareceu o relato preciso da Dani sobre a UTI, sobre a notificação da morte que ela ouviu sendo feita pelo telefone por uma enfermeira aos parentes da paciente, a sensação de pequeneza e vulnerabilidade, sobre o grande absurdo de se manter a crença de que alguém é melhor ou imune a isso, estando entubada e sedada. Assim me pareceu a frágil beleza da loira gritando de dor pelo hospital_ e como, em decorrência, ela me pareceu mais bela ainda, assim como a Dani, ao vê-la com os cabelos presos e lavados, me pareceu radiante de beleza.
E nisso se estabelece o que para mim é o maior atraso da questão: esse raciocínio exultante de sobrevivência remete sempre a um enjoativo e repelente deísmo meritocrático. Na página do Facebook desse conhecido, logo após essa nossa conversa, aparece a frase "nem tenho como agradecer a Deus por nos conceder tantas e tantas bênçãos", e a foto dele com sua esposa grávida já de três meses. A estultície de sua alegria é tão primária que o cega diante o fato de que nós temos dois filhos e a deficiência da válvula mitral da Dani se manifestou durante a gravidez, e que 90% das pacientes do cirurgião cardíaco que operou a Dani são mulheres que tem o mesmo perfil da minha esposa: tiveram reumatismo na infância e que, por alguma associação patológica, são perfeitas do ponto de vista coronário e poderiam continuar o sendo durante toda a vida, desde que não engravidem, mas que, se engravidarem, a doença se manifesta pela insuficiência da válvula mitral. Várias vezes eu tive que sair para passear com o Miles Davis, enquanto grupos de oração de várias denominações religiosas, que nem sabiam que nós existíamos, vinham fazer uma visita e orar para a Dani, depois que haviam sido informados que Deus precisaria ser reconduzido com maior apuro para um lar que, na falta desatenta Dele, resultou nisso, na moléstia, na danação, no expurgo físico e doloroso. Levi era apontado pelos outros prisioneiros de Auschwitz, na estranha hierarquia do campo, como "muçulmano", alcunha dada àqueles recém chegados que tinham tanta desprovidão de talentos e ausência total de indícios corporais de força e astúcia, que eram tidos como os primeiros a serem conduzidos para as câmeras de gás. Eram magros, com caras estúpidas, retraídos, fora do comum ou comum demais. Não pertenciam aos mais adaptados, preparados, aos mais astutos, ferinos e selvagens.
Em uma cena inesquecível, Levi relata a volta de todo o seu grupo de 200 pessoas para o pavilhão, após terem passado pela seleção de quem iria para o crematório no dia seguinte e quem havia sido temporariamente poupado. Alguns dos que haviam sido poupados se refestelavam no chão agradecendo a Deus pela benção, sem a menor consideração de que de frente a eles estavam os que seriam mortos logo pela manhã e mal tinham a metade de um dia sequer de vida. "Se eu fosse Deus", escreve Levi, "cuspiria fora a reza deles". Assim me pareceu o relato preciso da Dani sobre a UTI, sobre a notificação da morte que ela ouviu sendo feita pelo telefone por uma enfermeira aos parentes da paciente, a sensação de pequeneza e vulnerabilidade, sobre o grande absurdo de se manter a crença de que alguém é melhor ou imune a isso, estando entubada e sedada. Assim me pareceu a frágil beleza da loira gritando de dor pelo hospital_ e como, em decorrência, ela me pareceu mais bela ainda, assim como a Dani, ao vê-la com os cabelos presos e lavados, me pareceu radiante de beleza.