sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Naipaul



Passei todo o ano de 2005 lendo tudo de V. S. Naipaul. Já conhecia a obra desse autor solitário e áspero antes mesmo que lhe dessem o Nobel de literatura, e uma vez quis comprovar a estranha sensação de inefabilidade me causada por um de seus romances emprestando-o a uma namorada, que me devolveu semanas depois esclarecendo de um jeito enviesado minhas impressões sobre o livro. Ela disse: "É cheio de ferros corrugados e muito depressivo". Os ferros corrugados haviam me passado batido_ coisa que depois, com um olhar feminino emprestado para me antenar a esses mobiliários cenográficos, vi que o autor tinha uma compulsão por eles_, mas a enorme tristeza e desolação de Uma casa para o sr. Biswas correspondia ao que ela estava dizendo: para um leitor pouco acostumado, era algo depressivo. Eu quis responder a ela que era o retrato exato, sem maquiagens, de nossa condição social e de nossa história, mas antevi que seria uma discussão sem objetivo para os propósitos imediatos de nosso relacionamento, e que talvez ela reagisse negativamente a uma comparação com nossa situação nacional com um enredo acontecido na distante Trinidad y Tobago. Naipaul não serviria à sedução ou à manutenção de um relacionamento. Anos depois, como iniciei dizendo, resolvi que escreveria sobre esse escritor desconcertante em minha tese de conclusão do curso de história, e me pus a ler e reler suas obras. Foi um ano em que, inadvertidamente, me tornei o que se pode dizer um fã obcecado. Naipaul dividia com Saul Bellow as opiniões dos críticos sobre quem era o maior escritor vivo da língua inglesa, ora um retirando o outro do cume.

O título de meu trabalho era um insight bem arranjado: As encarnações imprevistas, as Américas subdesenvolvidas na visão de Gabriel Garcia Marquez e V. S. Naipaul. As duas palavras portentosas foram retiradas de uma passagem de Lord Jim, em que um velho capitão da guarda imperial inglesa é flagrado pela lucidez excessiva de Conrad com seu olhar perdido, por sobre seu cavalo, como se questionando quais arranjos do destino o jogaram naquelas terras da África, quais encarnações imprevistas o trouxeram até ali. Era uma metáfora cósmica perfeita para tudo o que sentem os personagens de Naipaul, toda a deslocabilidade irremediável de um Naipaul que Edward Said uma vez definiu como o intelectual exilado por natureza. Claro que o projeto era bem maior que as minhas capacidades do momento, e vários fatores da vida diária me levaram a escrever com o coração umas quase 200 páginas empregando meu escasso tempo livre, com uma paixão que tentava passar por cima das várias carência formais que sofria minha monografia. Tive que restringir a abordagem, concentrando-me em dois livros de cada autor, mas eu sabia de tudo e lera tudo sobre eles. Escolhi Cem anos de solidão, pelo óbvio, e, estranhamente para mim, escolhi um dos títulos de Naipaul do qual menos gostava, mas que reconhecia sua excelência, o Um caminho no mundo. Foi um ano em que vivi plenamente a felicidade da leitura; tudo que fazia tinha o direcionamento programado de sopesar em que contribuiria para minha tarefa; tudo se relacionava com a beleza e o impacto das páginas que eu, e só eu, estava tendo contato_ recordo de uma noite em que passei horas recapitulando mentalmente uma série de ideias, sentado em um bar após beber duas doses de vodka.

A parte mais difícil foi a de escrever sobre Garcia Marquez. O colombiano parecia apolítico e simplista demais perto de Naipaul, e eu ainda estava sofrendo a rejeição natural depois de vinte anos devorando GGM. Enquanto em GGM se encontrava uma fé e um cavalheirismo arturiano, uma fantasia sensual que poetizava a realidade, em Naipaul se encontrava a matéria podre, incapaz de eufemizações, a brutalidade, a ultra-violência, a americanidade desse lado austral do globo sem retoques e sem papas na língua. Naipaul é visceral, escatológico, impiedoso, seco_ antecipa com maior força a adrenalina criminalística de Roberto Bolaño, e é uma mistura de sociólogo maldito com Elmore Leonard. Mesmo o seu mais "lírico" romance (e haja aspas), Uma casa para o sr. Biswas, em que narra, ouvindo a voz de Dickens, as desventuras sempre malogradas do sr. Biswas em ter uma casa, há o elemento individualizado do niilismo naipauliano, sua denúncia resignada e cruel sobre as mais profundas resoluções da História. E Uma casa para o sr. Biswas, para maior agravante, é uma das narrativas mais engraçadas da metade final do século XX, em inglês. Mas trata-se da graça recapitulativa sobre a desgraça do pai de Naipaul, um trinitino semi-analfabeto que nunca teve uma casa, e que sonhava ser escritor mas que purgava uma rotina insossa de jornalista policial. Tal romance é de uma beleza destilada, de uma potência denunciativa sobre a opressão e a mutilação espiritual dos povos colonizados, que tal montante de susceptibilidades reativas se transformou apenas no laconismo fundo da namorada que resumiu tudo em mera depressão.

Naipaul é uma experiência limítrofe para um leitor, sobretudo um leitor do mundo situado na zona do subdesenvolvimento, tanto americano, como africano, asiático ou médio-europeu. Ele escreveu sobre todas as modalidades geográficas do subdesenvolvimento, visitou todos os países, e levantou grandes polêmicas. Onde esteve foi repudiado, na mesma medida em que teve reconhecimento de sua afiada capacidade de analista intelectual desvinculado de raízes. Parecia aquele personagem real do fraco filme de Spielberg que, sem nacionalidade, morava em um aeroporto internacional. Era a antítese de todos os escritores contemporâneos: sem pátria, detinha uma liberdade que soava amarga para quem sentia ter pelo que lutar. Por causa disso, ele foi meu escritor preferido, e por um longo período, eu compartilhei da crença dos que o julgavam maior que Bellow. Um de seus mais belos livros trata, ousadamente, sobre a visão da decadência da velha Inglaterra pós-imperial, o magnífico O enigma da chegada.

Fiz uma monografia capenga mas mesmo assim tirei a nota máxima, e seu volume encapado me rende, de quando em quando, que algum raro estudante me procure para falar sobre literatura e para que eu lhe proponha um tema. Apaguei o trabalho do computador, para que existam apenas as não-cambiáveis cópias da faculdade e a minha pessoal. Mas eu escrevi este post, de forma rápida, para noticiar que, o livro que me custou os olhos da cara na importação de seu original inglês, e que é uma das obras mais instigantes de Naipaul (que lhe rendeu o Booker Prize) acaba de ser publicado no Brasil, com um incompreensível atraso (visto que quase toda sua bibliografia já foi lançada por aqui). Estou falando de Num estado livre, lançado com uma capa horrível pela Companhia das Letras. Um espetacular livro de contos, com toda crueza e violência sem misericórdia de Naipaul. Falei de Naipaul no passado, mas, como todos sabem, o homem vive, apesar de ter anunciado há algum tempo sua aposentadoria nas letras. E há pouco foi lançado uma biografia devastadora sobre ele (um biografia autorizada !!), em que devassa os capítulos de sua vida em que foi um péssimo marido, e mostra seu crescente rancor ao que ele chama, injustamente, de um desprezo do mundo anglo-saxão por sua obra. Vai o homem, mas sua obra colossal fica.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

W.



As tais manifestações de junho tornaram o Brasil visivelmente pior. Todo mundo vê isso. O Brasil atrasado, conformista, pantanoso de tantos eflúvios de prostituição em todas as áreas, o Brasil naufragado em sua falta de relevância e sua história basbaque, com seu povo estanque e rudimentar, se oficializou, se cartorizou, após o junho de 2013. Foram 50 anos, desde o golpe militar do qual tanto se diagnostica a perpetuação de nosso atraso, até o dia grandioso de junho em que nossa capacidade de reação foi testada e avaliada negativamente. Os 50 anos que duraram um dia. Mostramos, com a retumbância de pesadelo às classes dominantes dos espetáculos públicos de guilhotinamento em série, que estávamos a realizar não o Evento, mas o escape final, o desfibrilar do último suspiro de um povo cuja capacidade de indignação ia tão somente até onde se alargava em curta distância a corda do cabresto em que nos amarraram. Era uma resposta funcional, apenas isso, sem nada de metafórico, sem nada de subjetivo. Quem lê qualquer livro de história do Brasil enxerga isso com plenitude: nascemos com a maldição de sermos completamente desprovidos de transcendência. Li o Getúlio, do Lira Neto, por exemplo, com grande sofrimento: uma leitura que se arrastou por longos dias. É comovedor o quanto Lira Neto se esforça com todo seu talento para a leveza em transformar a história deste que é o nosso maior político de todos os tempos em algo divertido. E o livro se torna apenas o que Getúlio é, o retrato do poder desinteressante quando não existe um povo. São quase 500 páginas falando sobre famílias de renome, deputados, donas de casa exemplares no que tem de escoro para os abusos patriarcais, sobre assassinos bem colocados na hierarquia do poder, e nada de povo, nada de que existisse uma nação em efervescência mesmo colateral de vida urbana ou comunitária de qualquer tipo por baixo dessa tapeçaria fina em que se gravam os nomes de coronéis e que se criam as metástases sempre bruxuleantes de uma burocracia que os mantenha, que os explique para si mesmos. Em determinado momento do volume 1 da biografia de Getúlio, já que Lira Neto a dividiu em três grandes tomos organizados em datas a serem cumpridas à risca, a narrativa fica de uma chatice quase insuportável, em que a falta de enredo dá lugar a ações protocolares sem o mínimo interesse sobre a ida de Getúlio à candidatura à presidência da república. A culpa não é de Neto, mas da nossa história. Há longos bastiões de vazio e inércia em nossa história. Não há como o historiador pedir licença e executar uns passinhos de dança para ocupar o espaço.

O único dia que realmente teria feito a diferença para o Brasil foi aquele de junho em que mais de cem mil pessoas tomaram a Rio Branco. Tudo o que havia acontecido no país até em tão, foi o óbvio com atraso: o paulatino recuo dos militares (nunca a saída deles), as eleições diretas, a mudança de poder para a esquerda, os simbolismos construídos do operário e da mulher no poder máximo da nação a servirem para tantas necessidades em dois sentidos de facções ideológicas. Tudo isso era previsto, era lógico. O único dia que seria revolucionário, tanto pela sua inesperabilidade que pegou todas as descansadas elites com as calças arriadas, tanto pela eloquência dramática da estética de destruição iminente das imagens do povo nas ruas, seria o dia de junho em que ocuparam a Rio Branco. Qualquer brasileiro, por mais sepultado que estivesse nele a confiança, por mais que estivesse cicatrizada a mais ínfima fé, sentiu uma exultação bíblica dentro de si, sentiu os ventos da história querendo soprar com brutal força por dentro do mobiliário empoeirado dos nossos cômodos de velhos resguardados de toda promessa. Eu mesmo chorava a cada vez que ligava a televisão, da maneira mais boba e infantil. De uma hora para outra deixei de odiar e desprezar o Brasil, e estava louco para comprar uma bandeira, estava louco para viajar até as zonas principais do conflito e falar com esses novos brasileiros, me lambuzar com esse novo idioma, respirar esse suor elétrico. No fundo, no fundo, o milagre era muito apoteótico para que não houvesse uma vozinha cobrando contenção em mim, uma descrença senil de tanto uso efetivo da experiência. Todo mundo, de igual maneira, estava preparado para quando o pó lunar se dissipasse e a realidade voltasse a atuar com toda a sua implacabilidade. Não era possível que a história tivesse sido expulsa, a nossa tão elefantina e insípida história, a nossa história que sempre fora apenas a história de algumas famílias, tivesse sido trocada por alguma graça cosmológica, e em seu lugar houvesse sido posto um novo começar virginal, em que a fúria e a paixão sinfônica sobreporia o silêncio das xícaras de porcelana e os plim-plins regulatórios da hora de dar uma mijada no banheiro dos intervalos das novelas televisivas. Não era possível que, de uma hora para outra, o povo tivesse sido transfundido.

No final, todos os inimigos estavam certos. Porque foram eles que moldaram o que nasceu sem forma. Foram eles que disseram que tudo foi por causa dos tais 20 centavos. Foram eles que disseram que as últimas manifestações brasileiras haviam sido contra a vacina da varíola e a favor da monarquia, por isso, quem era o povo brasileiro para exigir causas esotéricas e whitmanianas. Foi apenas uma miserável e vexaminosa manifestação de trabalhadores assalariados pela única coisa que comportava as nossas vidas medíocres: o não-aumento das passagens do transporte público que nos levava e trazia de volta à exploração do sub-emprego cotidiano. Queríamos apenas um maneiramento nas rédeas, não uma mudança que nos retirassem o fôlego. Tudo foi por causa de 20 centavos.

Os estrumados no poder, que se arrepiaram de pavor ao ponto de proporem projetos mirabolantes como a da corrupção como crime hediondo, puderam voltar a respirar em paz, munidos da vantajosa quantidade de um inédito poder: a do conhecimento de que não somos ninguém. De junho para cá, meros 4 meses que tem o escopo de uma década, se sedimentou o perfil definitivo do povo brasileiro, um povo definitivamente inofensivo, que não deve ser temido. As novelas da Globo voltaram com força total, a impunidade foi distribuída como hóstia, como o corpo de um Cristo que sempre abençoa e guarda os que sempre foram abençoados e guardados. O Brasil segue, em um estupidificado, nebuloso e anêmico silêncio.

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Há uma semana Gustavo Ioschpe escreveu um artigo sobre se devemos, no Brasil de hoje e sempre, educarmos nossos filhos para serem éticos? Instigante reflexão. Com tantos W.s em cada canto do corporativismo estadual, enriquecendo sobejamente com dinheiro público, com tantas boas intenções manipuladas para interesses políticos bairristas, como o Bebê Prefeito, e com tanto vazio mental que aplaude o clichê, como alguém ético pode sobreviver no inferno? Ainda não sei responder isso, e isso me angustia.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Escrevendo um novo Testamento_ duas obras capitais de Primo Levi



O leitor de É isto um homem? e A trégua dificilmente imaginaria, se não fosse o óbvio conhecimento da história conseguinte, que o autor destas apostas obstinadas no espírito humano acabaria com a própria vida muitos anos depois de ter escrito estes livros, se lançando do alto das escadas de um prédio em Turim. É difícil imaginar, justamente por esses dois exemplos de grandeza literária (entre uma bibliografia por si só cheia de pontos altos), que o mesmo olhar jovial cheio de uma indecorosa radiância de vida que atravessa as páginas dessas memórias aterrorizantes iria se esmorecer com a idade até o ponto do desespero irrevogável do suicídio. Pois existem poucas obras sobre o holocausto que contêm tanta alegria, se é possível dizer isso referente ao tema, uma alegria que transcende as formalidades do lamento reverencioso pelos que morreram nos fornos das indústrias da morte dos campos de concentração alemães, que passa por cima da destruição sem volta das filosofias que expliquem o homem como ser digno do pensamento superior, que se recompõe diante o excesso insuportável de conhecimento sensorial sobre o quanto a Terra é o verdadeiro inferno e o quanto a história é uma ordinária jaula de aflições para o animal humano.

A alegria de Primo Levi ao escrever esses livros é a pura e biológica alegria do sobrevivente, sem remates, sem compostura, com o imediatismo adaptado às implacáveis circunstâncias de que não se pode ter tempo para olhar em volta e raciocinar sobre o que vê; a alegria do instante conseguido, mais um segundo, mais um dia em que seu ultra-fragilizado corpo consegue se levantar, apesar da fome, do frio e do trabalho intensos, e seguir adiante até que se cumpram as 24 horas de sua suspensiva existência sem propósito. Talvez por estes textos_ principalmente os do mais arrebatador deles, o É isto um homem?_ terem sido compostos a partir de rascunhos feitos no calor do instante, quando Levi estava em meados de seus vinte anos e fazia anotações escondidas no Lager, encontremos neles uma esperança de prosseguimento típico da primeira juventude, um desconhecimento orgânico natural da própria finitude, por mais que ela estivesse explícita a cada momento. A alegria de Levi é a alegria que encontra forças ególatras substanciais para manter-se humano, para tecer pensamentos sofisticados alinhados no formalismo do extinto e impossível mundo antes de Auschwitz que Levi acreditava que nunca mais iria voltar a ver; é a fé incutida no derradeiro estágio do farrapo que alcança a sublimidade arrebatadoramente solitária de ter tanto o primitivismo puro do verme que se contorce sob o sol para garantir alguns segundos a mais de vida, quanto do repositório de toda a cultura humana que o faz ainda capaz do brilho de continuar a escrever a grande literatura. Levi é o elo inverossímil entre o que se perdeu para sempre do espírito humano na Shoá e a reconstrução a partir do nada do depois, suspenso no vazio.

Por isso, ler esses dois documentos de uma limítrofe verdade é uma experiência única para qualquer leitor. Acompanhar o Levi pós-adolescente no cotidiano do Campo é ser apresentado a uma mente privilegiada que cogita, explora, desespera friamente, se enche de súbitas e catárticas revelações esotéricas que vem mais da fome e da dor do que da abstração disciplinada (da fome e da mesma dor que alimenta todos os elucidados pelo esclarecimento extremo), se reduz à mera busca de suas satisfações básicas, tornando-se selvagemente desprovido de moral, amor próprio e constrangimento. Esses dois livros são espelhos um do outro, uma espécie de yin-yang, de calor e frio: É isto um homem? é indizivelmente pesado, mostrando uma realidade inescapável, um fim dos sonhos, uma morte lenta e cozida, uma vulnerabilidade que faz da vida continuada um milagre suspeito, cujo mais certo é que se extinguirá ao final de ardis tortuosos; é um buraco-negro de todas as realizações humanas e um adeus definitivo à capacidade de que a humanidade algum dia venha a se regenerar desse inextinguível erro; já A trégua é a parte do alívio, da volta da esperança, a parte solar e carregada de um êxtase feliz por se estar vivo_ é a força reconfigurada de Levi em se mostrar vaidosamente virtuoso em desenhar tipos imortais, paisagens devastadas mas carregadas de promessas, histórias dos sobreviventes que cada uma por si daria magníficos romances.

Ler É isto um homem? é medir-se através da régua perpétua do Levi que viu a convolução da história em seu movimento mais pavoroso; dificilmente o leitor torna a reclamar de seus tédios urbanos confortáveis do presente século após ler que o mais importante no Campo era manter os pés protegidos, seja pelos sapatos migalhados que os sobreviventes roubavam dos cadáveres, seja pelos farrapos de panos de que eles envolviam os pés para não sofrerem da gangrena do inverno feroz de Auschwitz ou qualquer outra doença_ ter a aparência alquebrada, mesmo no relativismo em que todos os prisioneiros eram verdadeiros zumbis, era o decreto de que seriam executados por total obsolescência. E esse é só um dos sofrimentos que Levi narra, em um tom sem reclamações, sem desejos de vingança_ às vezes, aqui e ali, uma explosão de ódio que vai mais contra os graus sempre avançados de corrupção tanto de si mesmo quanto de seus companheiros de prisão do que contra seus algozes_, com a disciplina expositiva do químico formado (Levi o era) que faz de suas memórias um desenho fiel da psicologia e do novo mundo biológico do Campo em que a espécie nova de animal em que se tornara se inseria. Vemos o mundo novo através dos olhos de Levi e o mínimo que nossas mentes adaptadas demais poderiam previr além dos nossos horizontes impostos seria a de que Levi, aos 24 anos, antes de ter dado entrada na prisão sob o número tatuado no pulso 174.517, era como nós, leviano e cheio de planos gananciosos, cheio da veranil sensação de que ele basta ao mundo e que nada poderia estar à frente de suas ambições de poder pessoais. E uma cena Levi se diz nunca mais esquecer, que é a do doutor loiro diante o qual ele tem que se submeter a um teste para ver se está capacitado para assumir uma das vagas de químico do Campo: o homem nem sequer o olha, nem sequer parece dar por estar ele em sua presença, é completamente indiferente à informação de que Levi se formou pela Faculdade de Química de Turim. Simplesmente, Levi não existia; ele poderia decretar a sua morte ali mesmo, como se pisa em um inseto, e o dia seguiria sem que aquilo ocupasse sua memória. Assim acontece com as mulheres germanas que conversam entre si trivialidades (em um cenário de horror indizível em volta), lixando as unhas, que trabalham no laboratório, e que só dão pela presença do esqueleto andante de Levi para expressarem entre si o nojo que sentem diante o podridão que sai de Levi e lhes ofende as narinas. Levi narra o ambiente em que Deus deixara de ser sequer um lenitivo metafísico e em que ninguém entre os prisioneiros já não se importava mais: a única coisa que lhes ocupava as réstias de vida era a sobrevivência instintiva imediata. Estaríamos nós escrevendo uma nova Bíblia, um novo Testamento?, Levi se questiona.

"...aguçar o engenho, fortificar a paciência, acirrar a vontade. Ou, também, sufocar toda dignidade, apagar todo vestígio de consciência, ir à luta, brutos contra brutos, deixar-se guiar pelas insuspeitas forças ocultas que sustentam as estirpes e os indivíduos nos tempos cruéis. Muitíssimos foram os meios que imaginamos para não morrer: tantos quantos são os temperamentos humanos. Cada um implica uma luta extenuante de cada um contra todos, e muitos deles uma longa série de aberrações e compromissos. A não ser por grandes golpes de sorte, era praticamente impossível sobreviver sem renunciar a nada de seu próprio mundo moral; isso foi concedido a uns poucos seres superiores, da fibra dos mártires e dos santos." (É isto um homem?, p.136)

Levi atinge um limite além de Kafka ao mostrar, sem fabulários e sem figurações, a crueza da desumanização absoluta promovida pela burocracia da máquina da guerra, na qual se intersecciona o maquinário caótico dos cenários de coletivização insensibilizada dos Campos de Concentração e do mundo destruído dos vencedores após a guerra. Para ele, a humanidade deixou de ser e deu lugar ao insofismável monstro de mil faces, um Leviatã que assume sua insanidade em simular um pesadelo de papéis e números que não se pragmatiza em nada em uma sociedade regrada e segura. A Europa que o combalido mas radiante de vida Levi atravessa, após o fim da guerra, em A trégua, é um mundo em que só por exercícios de esperança é a mesma Europa oitocentista da promessa do novo iluminismo através da evolução sem freios das técnicas médicas e de conforto urbanos _ a Europa do Zeppelin e das festas de passagem do século na Torre Eiffel. A Europa descrita por Levi é a que vai figurar nos cenários de destruição dos filmes de Tarkóvski e na desolação sônica de O arco-íris da gravidade: já não é simples localidade geográfica, mas uma composição espiritual no que tem de novas percepções sobre a distorção inalterável. A Europa que se oferece ilusoriamente em sua estatura impossível para um Levi que não chega a brincar que crê na resiliência é a mesma que deve ter-lhe confrontado em um ataque de vingança final no alto das escadarias de Turim, em seus 70 anos de vida. A mesma vida que lhe pareceu, naquele instante em que mais uma vez sua mente aguçada percebera, agora contra ele mesmo, se acionar nos mecanismos de repetição da história em que novos Auschwitz e sempre recorrentes e inconclusos Testamentos estão a serem escritos. Só que deve ter lhe parecido impossível responder: para quem?

"Meditava pensamentos amargos: que a natureza concede raramente reparações, e assim é a sociedade humana, enquanto é tímida e lenta ao separar-se dos grandes esquemas da natureza; e que conquista representa, na história do pensamento humano, o chegar a ver a natureza não mais como modelo para ser seguido, mas um bloco sem forma para ser esculpido, ou um inimigo contra o qual devemos lutar." (A trégua, p.36)


domingo, 13 de outubro de 2013

O Jesus de Leminski



É sempre assim: minha falta completa de disciplina de leitor permite que, antes que eu possa acabar o livro com o qual estou comprometido há semanas, um outro que recém chegou em casa se interponha no caminho e me cative por inteiro. Dessa forma, deixei de ler os dois livros que estou para finalizar, com os quais havia me comprometido para esse fim de semana, e me vi hipnotizado pela fantástica prosa do Jesus de Paulo Leminski. Comecei por folhear o volume com mais outras três biografias (que soam improváveis, para quem conhece o grande curitibano apenas superficialmente), e logo li a primeira página da parte de Jesus (que Leminski referencia como profeta, outras vezes poeta), e logo não conseguia mais largar a leitura.

Vamos por partes: Leminski parece deixar ver aqui que era um profundo conhecedor de literaturas; não só pelo monumental domínio sobre os tantos textos hebraicos, gregos e em latim tardio, em que estão enredados os tantos livros crísticos e judaicos, cujos longos excertos citados no volume foram traduzidos por Leminski, como, ao que me pareceu invejável, sua perfeita compreensão das indevidas limitações em que está a literatura brasileira. Explico: lendo esse conjunto de ensaios simplesmente estonteantes (para usar do belo coloquialismo de beco do autor), é impossível não descobrir em Leminski o nosso Borges, ou o nosso Cortázar, ou o nosso Saul Bellow e Anthony Burgess, em questão de intelectual ultra-erudito, leitor de tudo e senhor de vastos conhecimentos. Leminski conhece tudo. É, penso, o nosso mais inteligente e culto poeta, senão nosso mais, nesses termos, escritor. O único que me vem à cabeça que poderia lhe ombrear em uma conversa de deixar queixos caídos é Guimarães Rosa. Por isso, tanto por exaustão abnegada de quem está a um nível muito elevado, tanto como pela conjunção natural entre popular e erudito que acontece quando os limites distantes são rompidos, Leminski apresenta essa brincadeira na escrita, esse não-se-levar-a-sério que se leva muito a sério, essa criança leminskiana que se surpreende e se encanta com tudo, esse ingênuo genial que sempre me lembra de Whitman quando diz que o aprendizado o empacou diante o primeiro livro e as magias da natureza de maneiras que a única coisa que ele quis fazer era ficar lá, observando, calado. Assim, Leminski parece dizer, com essas biografias improváveis, que em nossa literatura pátria, tão pequenina, a ausência de romances-ensaios, ou de uma escrita de peso sobre outros campos de exploração do saber, poderia ser rompida aos poucos, com paciência, com a quantidade de páginas reduzida que adivinha o livro didático juvenil, mas que, em contraposição, não é nada modesta. Essas quatro biografias parecem livros informativos encomendados, como a coleção Primeiros Passos; tem ilustrações cômicas, são espaçadas por parágrafos pequenos, mas esse fenótipo é astutamente enganador. Esse Jesus, por exemplo, sem nenhum medo de exagerar, tem a mesma volatilidade dos escritos esotéricos de Saul Bellow e Thomas Mann. Enquanto eu o lia, deslumbrado pelo domínio de Leminski, me lembrava das tantas reflexões sobre o espírito em romances como Herzog e O Legado de Humboldt, quanto da primeira parte de José e seus irmãos, em que Thomas Mann cria uma cosmologia na qual data a época em que a matéria foi insuflada pelo Verbo.

O Jesus de Leminski primeiro mostra essa revelação sobre a literatura brasileira, dos meados da década de 1980 em que foi escrito; Leminski parece dizer aos outros escritores nacionais: "Oi, podemos fazer isso; podemos sair da temática tirânica a que estamos confinados por termos nascidos com essa vocação, nesta geografia, e escrevermos sobre coisas distantes, sobre assuntos ilimitados, sobre filosofias germânicas e aquilo que construiu as religiões; nada para nós é sagrado, e podemos envolver essas digressões com muito conhecimento". Leminski reivindica, nesses quatro livros, o que Bolaño reivindicou ao falar que o subdesenvolvimento de nosso continente não permite que aqui surja uma literatura de gênero. Jesus transita por uma fluidez formal que insinua uma vastidão possível por parte do autor, que poderia ter sido escrito mais, ter sido escrito um tratado de 300 páginas só com isso, mas a descontração de Leminski impõe a concisão, impõe uma falsa modéstia. Em determinada parte, o poeta escreve algo e coloca em parêntese, oi Alice, como se aquilo fosse o prosseguimento de uma conversa anterior muito explorada, muito intensa, algo não editado e que é puro Leminski. Ganha-se muito tornar-se íntimo da escrita de Leminski. Foi uma das minhas maiores realizações dos últimos anos.

O livro tem muito humor (começa com uma falsa notícia jornalística, extra!, extra!, que soara nos tempos do nazareno), e passa por um estudo sucinto sobre as etnias judaicas da época, sobre as similitudes entre os quatro evangelhos e suas discordâncias maiores, sobre as heranças das religiões pagãs no cristianismo, e sobre Jesus e Buda, sobre Jesus e as mulheres, sobre a força poética que faz de Jesus um dos maiores poetas da história (nessa parte, há belíssimas coletâneas dos evangelhos canônicos e apócrifos traduzidas do original por Leminski). Uma das partes mais saborosas e espantosas, se reserva às páginas em que Leminski aproxima James Joyce de Jesus, sobretudo as várias implicações cristãs em Finnegans Wake_ partes realmente fundamentais para quem gosta de literatura e Joyce.

As outras biografias, que começarei a ler a partir de amanhã, são do poeta Cruz e Sousa, do inventor do Haikai, Bashô, e de Trótski. Um livro arejado e delicioso de se ler.

sábado, 5 de outubro de 2013

Sábado à noite



Estou agora_ às 22:28 h_ acabando de lavar o piso da casa, o banheiro, a garagem e a área dos fundos, além dos talheres e panelas. A patota toda retorna amanhã. Vou buscá-la. Trabalho cansativo mas recompensador. Há anos não sei o quanto é terapêutico lavar a casa. Fazia isso toda semana, quando era solteiro. Fiquei com medo hoje, mas a coisa veio naturalmente. Deixei rolando o Magma, uma banda francesa de fusion excêntrica e fantástica. Esse álbum ao vivo é maravilhoso! Merece o ponto de exclamação. Impossível não se arrepiar com a faixa 4, Hhaï, que deveria fazer a imaginação de todo publicitário da imagem fervilhar, se essa categoria ainda existisse. Vou colocar esse álbum no pen-drive e vou ver o sol nascendo na viagem até a capital. Semana que vem, com minha rotina normalizada, prometo que volto com posts mais substanciais. Que porra, espero que deem logo o Nobel para o Roth neste ano, caralho.

Nobel de literatura de 2013?



Nessa semana que se segue está programado o anúncio do novo ganhador do Nobel de literatura, conforme a tradição da academia sueca em fazê-lo por volta do dia 10 de outubro. Eles bem poderiam descansar esse ano da mania de desencavar escritores que ninguém conhece para receber o galardão, e dá-lo para um dos dez ou mais grandes escritores notórios que purgam a cada ano o martírio da expectativa. Não adianta: por mais que um escritor se diga indiferente ao prêmio, o Nobel é o mais importante rito de passagem para o reconhecimento definitivo. Muitos escritores só se tornaram "canônicos" e reconhecidos depois de ganhá-lo, ainda que boa parte destes foram lançados, logo após, em um ostracismo absoluto: alguém se lembra de Pearl Buck?; em escala mais recente: alguém se lembra de Gao Xinjian? Ou o Nobel do ano passado: alguém já leu alguma coisa do... como chama mesmo o chinês?

Esse ano eles deveriam presentear os leitores mundiais escolhendo algum dos escritores que brilham nas casas de apostas. São muitos e não vou ficar aqui citando nomes. Meus preferidos? Se fosse pela minha escolha, eu daria o Nobel ao Thomas Pynchon. Ninguém merece mais que ele, seja pela prosa monumental, pela ousadia da obra, pela junção de excelente narrativa com experimentalismo, pelo conjunto da obra que não apresenta medianidade (todos os seus 8 romances são obras-primas), e pela idade certa em que Pynchon está, na qual um Nobel já não é factível de comprometer a qualidade de eventuais escritos futuros. Por essa última razão, eu não daria o Nobel deste ano a Javier Marías, ainda que ele o mereça como nenhum outro; mas Marías ainda tem muito para escrever, e seria injusto com seus leitores que sobre ele recaísse a maldição do Nobel, que é aquela em que o senso comum diz que o escritor perde em definitivo a mestria profissional assim que sobe por aquelas escadas de Estocolmo. Daria o Nobel ao Philip Roth, claro. Ao Cees Nooteboom. Ao Claudio Magris. Não o daria ao Vila-Matas, nem ao Lobo Antunes (que sofre da maldição do Nobel, em um caso raríssimo para alguém que não o recebeu), assim como nunca o daria a Murakami, a Auster, a Ian McEwan. E, definitivamente, nunca o daria a Bob Dylan, a Bono Vox e a Ariano Suassuna.

Vamos aguardar, embora não vá ser em nada surpreendente se o prêmio for para algum poeta minimalista dodecassílabo esquimó.