sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A trilha antes do alívio



A impressão de falência vai deixando aos poucos de existir quando a escrita se torna um exercício diário, uma obrigação pura imposta para incomodar o organismo. Vem a certeza rendida de que afinal a escrita não tem tanta conexão com alguma zona só alcançada pelo êxtase, uma ascese espiritual que nos arrebata do mundo, mas é tão somente uma extenuação física. Como correr dez quilômetros ou trabalhar arduamente em uma tarefa no campo, com o sol inclemente atingindo a aba deitada do chapéu. Fico com os dedos eletrizado pelas teclas; o olhar tendente à perca de foco (meus olhos ficam parados talvez com a mesma comovente distração da minha filha, mas com certeza sem a beleza hipnótica do olhar dela nessas ocasiões); a testa suada mesmo sob as horas de exposição ao ventilador ligado no máximo que adaptei junto á mesinha, em uma cadeira alta. Há uma quase alegria por ter conseguido alguma coisa, e aí talvez a coisa possa ter, quem sabe, a permissão para ascender-se, transformar-se em uma independência, ou uma imersão completa. Isso, eu sei, vale mais que todo dinheiro do mundo, que todo reconhecimento e fama. Justifica tanta gente escrevendo em seus escritórios caseiros à meia luz, ou em bibliotecas públicas (loucamente ausente das esferas de relevância, com a língua de fora, à mercê do olhar ridicularizador das mocinhas colegiais, ou da incredulidade rápida e sem tempo dos que estão ali para assuntos que interessam, passar em um concurso público, escrever um fichamento sobre um capítulo de um tratado de Microbiologia, acertar as contas do mês, o que vai dar para pagar).

Algumas vezes já senti isso. Uma vez eu passei horas no meu quarto, escrevendo um texto muito introspectivo sobre o fantasma de uma menina que aparece a seu irmãozinho inseguro. Eu tinha 15 anos, foi em 1989. Não sei de onde veio a ideia, eu nada tinha de pronto na cabeça, só fragmentos de música, como sempre. E me pus a escrever a redação que era tarefa de escola. Foi algo tão visceral que eu sabia que era um texto único, que serviria para parar a rotação do mundo. Nessa hora de plenitude não interessa nenhuma vaidade em aparecer. É como uma mãe que salva o filho de um desmoronamento de terra, carregando-o debaixo da chuva, indiferente a tudo que a cerca. É algo bem próximo à santidade. Mesmo sendo uma grande merda, quando se lê, ou se escuta a frase composta, ou se analisa mais desapaixonadamente o rascunho da tela pintada. A congratulação pessoal por ter criado algo é impagável. Por isso um dos personagens de Amsterdã, do McEwan, ao achar a frase mais importante da sinfonia que estava compondo, ignora voluntariamente a ocorrência de um estupro que ele podia evitar, em prol de escutar a cristalina emissão da música que lhe descia pela inspiração do céu. É por isso que Naipaul, quando escrevia Uma casa para o sr. Biswas, no quartinho barato de alugado em uma casa em Londres, andava radiante de felicidades pelos supermercados pensando que nem se lhe oferecessem 3 milhões de libras para ele destruir o romance, ele jamais o faria; não o venderia por nada. É por isso, também, que um conhecido meu, que é um exímio marceneiro, vive sem culpa às custas da esposa advogada porque faz suas excêntricas peças de mobiliário só quando lhe dá na telha, e se recusa terminantemente a vendê-las.

A coisa ainda não veio. Mas serve para mostrar que não existe um programa, um planejamento, não existe o que o Jorge Amado, aquele falastrão, disse de ter cada linha de seus romances prontos de antemão na cabeça. Muito do que eu estou escrevendo vai para o lixo, mas serve para evidenciar a estrutura do que pode vir em seguida, a matéria genuína. Nessa semana, por exemplo, em uma acesso de fé, escrevi umas nove páginas eufóricas sobre quando eu usava botinhas ortopédicas. Isso ainda existe?, me vi perguntando: botinhas ortopédicas. Que abominação! Defini-a nessa páginas livres, com a equivocada sequência de palavras que definem um galeão espanhol de uma frota armada. Pouco sei de galeões espanhóis, e interpus ao retrato um detalhe impossível de que o couro da bota era presa ao suporte de madeira bruta com corda de embarcação. Isso não existe, nem sei o que escrevi, mas me soou bem, me fez feliz, fez com que a marca de sinalização, o meu barômetro pessoal, deslocasse alegremente o ponteiro para a zona azul, em concordância. Só fragmentos de músicas. Sou um compositor que nunca vai se resolver na música, que nunca tentou aprender violão, que nada sabe sobre notas musicais, e que aposta tudo no suicídio da escrita. Uma páginas só para que eu leia. Como uma confissão de amor, uma carta incrivelmente auto-denunciadora que não entregarei jamais a seu destinatário. Uma arma contra mim mesmo. Sensível e delicado, os olhares de fora podem quebrar. Se sou macho, aquilo é uma áurea feminil; se sou forte, aquilo é a desproteção sem muito tempo de vida de um filhote de pássaro que caiu do ninho. Algo assim. 

Não faço ideia do porque escrevi sobre botas ortopédicas. Nunca pensei nelas, trinta anos sem que elas me voltassem à cabeça, e, contudo, nove páginas. Essas, escritas à mão, com a coluna encurvada, de calção, em cima da bi-cama da biblioteca, interpondo carinho ligeiramente reprovador às mãozinhas que batiam à porta falando "papai, deixa eu entrar", e voltando à transubstanciação, sem que nada me demovesse. Não sabia sobre tanta coisa dessas botas. Passei a entender a raiz de meu desentendimento com minha mãe pela análise dessas botas. Minha incorreção com o mundo partindo dos pés, que teimavam a seguir a ordem modal de apontarem para frente, demonstrarem segurança de pertencimento ao mundo, de estar apto a ser normal, de não ser incomodado em minha cordata e evidente normalidade. Em determinado momento parei e chorei, um choro morno, plácido, que se transformou em puxões nasais intensos, altos. Olhei pela janela para ver se minha esposa não poderia ter me descoberto. Bobeira. Mas que bom. Foi o Pessoa ou o Machado que falou que nada havia de mais feliz que poder chorar de tristeza em um canto solitário. Acho que foi o Machado. Preciso reler o Machado. No instante me senti irmanado ao Machado: pronto cara, aqui está, sou da sua turma, posso andar no mesmo compasso. Pretensão da porra! Mas foi isso que senti. Olhei para meus pés. Ainda tortos, concluí. Será que foi tudo para dar a impressão à minha mãe que eu era um menino competitivo como os outros? Será que isso vai se tornar o meu Carta ao pai?

Plano (que a intervenção do cotidiano, da intuição de que eu não sou nada disso, e de que as narrativas pretensiosas já acabaram a muito tempo): um romance de formação, movimentado, radiante, whitmanianamente cheio de uma fé triste, da fé inexoravelmente triste da criança no departamento de oncologia que cada sorriso é um plano absurdo para o dia de amanhã, para o dia que não virá. Um livro cheio de meiga e verossímil tristeza, que tangencia, dá rasante, à alegria.

A inevitável canção no pavilhão da orelha: o realismo com vento nos cabelos de Augie March, que me agrada muito, ou a fantasia semi-bruxuleante de Filhos da meia-noite, que não desejo, mas que se adapta melhor, eu acho, aos propósitos que imagino surgirão para adequar a trama à necessidades incontornáveis e involuntárias da história e da política do continente. Algum latino-americano nascido na década de 70 do século vinte poderia ter a segurança solar e a juventude pródiga de Augie March? O realismo fantástico não é, afinal, o único reduto de legitimidade para nosso absurdo?

Nota: como vencer o realismo fantástico sem cair no noir indesejável e na depressão crônica de autores alternativas como Bolaño?

Antítese hegeliana: descobrir, como sempre, cinco dias depois, que a coisa não presta, que o peso de toda predestinação ao fracasso na escrita desmorona, até com alívio, sobre mim.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Tomasz Stanko e Wislawa Szymborska


O grande trompetista Tomasz Stanko fez uma belíssima homenagem à excepcional poeta Wislawa Szymborska neste cd duplo. Jazz de primeira com literatura de primeira.