A chuva é maravilhosa. Chove ininterruptamente aqui há 4 dias. Uma atmosfera que combina com a soturnidade confortável da casa e o prazer da leitura. Passei estes dias envolvido intimamente com Robert Musil; o vício era tanto que cheguei a cogitar em uma lista alternativa dos meus melhores livros e colocá-lo lá entre os cinco primeiros.
Entremeando esta leitura, li alguns contos desse volume magnífico da Antologia da literatura fantástica editado pela Cosac Naify, cujas assinaturas de Borges e Bioy Casares o torna menos imprescindível que mítico e cultuado. Esse livro tem uma inteligência fina por detrás, que o situa além da quase previsibilidade de seus títulos. Tem o Pata de macaco, um conto que eu amo durante muito tempo e que ainda não o tinha na minha biblioteca, e que me pareceu ainda mais desamparado agora do que quando o li na juventude_ mas com um toque vulgar que não tinha reparado antes, uma certa insuficiência que, em contrapartida, tornam ainda mais humanos esses leitores inveterados que foram Borges e Casares. Há uma gema preciosa de autoria de Casares, A lula opta por sua tinta, que é pura inteligência e humor finíssimo. Há um conto de Maupassant que não figura entre seus melhores, e nem talvez entre os segundos melhores, mas que corrobora com o intuito de que essa antologia se presta à correspondência idiossincrática da personalidade de seus organizadores, o que o torna mais genuíno do que se em seu lugar houvesse um Maupassant mais puro. Há uma série de excertos curtos, de três linhas, que são absolutamente deliciosos. E há, o que confirmei com renovado espanto há poucas horas, essa diatribe inclassificável que se adéqua a todas as expectativas da sublimidade literária, intitulada Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Esse é o conto mais extraordinário, genialmente bem escrito e maravilhoso que já li. Chega a ser algo próximo à loucura, literalmente. Li esse conto várias e várias vezes, desde que ele provocou aquele assombro majestoso e profundo de quando o li pela primeira vez lá pelos meus 15 anos. A sua primeira página é de uma leveza e ardilosidade que só pode ser definida pelo adjetivo multi-simbólico de borgeano. Borges o escreveu, com absoluta certeza, em um estágio de alteridade de consciência que me faz correlacionar com uma definição de felicidade de Nietzsche: um conto escrito com a leveza de uma borboleta ou de bolhas de sabão. Vou transcrever agora o início da parte 2 desse breve conto, uma das páginas mais engraçadas e arrebatadoras da literatura; notem a traquinagem de como foi escrito, a sua alegria satânica e sua laconicidade paradoxal de onde partem infinitas insinuações deduções multifocais (Martin Amis foi de uma obviedade correta ao confessar seu deslumbramento pelos contos de Borges, nos quais cada página equivalia a romances inteiros). Lá vai:
Alguma lembrança limitada e minguante de Herbert Ashe, engenheiro das ferrovias do Sul, persiste no hotel Adrogué, entre as efusivas madressilvas e no fundo ilusório dos espelhos. Em vida sofreu de irrealidade, como tantos ingleses; morto, não é sequer o fantasma que já era então. Era alto e apático e sua cansada barba retangular já fora ruiva. Acho que era viúvo, sem filhos. De tempos em tempos ia para a Inglaterra: visitar (presumo, por umas fotografias que nos mostrou) um relógio de sol e uns carvalhos. Meu pai tinha estreitado com ele (o verbo é excessivo) uma dessas amizades inglesas que começam por excluir a confidência e que bem depressa omitem o diálogo. Costumavam fazer um intercâmbio de livros e revistas; costumavam bater-se no xadrez, taciturnamente... Lembro-o no corredor do hotel, com um livro de matemática na mão, olhando vez por outra as cores irrecuperáveis do céu. Uma tarde, conversamos sobre o sistema duodecimal de numeração (no qual doze se escreve dez). Acrescentou que esse trabalho lhe fora encomendado por um norueguês: no Rio Grande do Sul. Há oito anos que o conhecíamos e ele nunca mencionara sua estada nessa região... Falamos de vida pastoril, de capangas, da etimologia brasileira da palavra gaucho (que alguns velhos uruguaios ainda pronunciam gaúcho) e nada mais se disse_ Deus me perdoe_ sobre funções duodecimais. Em setembro de 1937 (nós não estávamos no hotel) Herbert Ashe faleceu devido ao rompimento de um aneurisma. Dias antes, ele recebera do Brasil um pacote selado e registrado. Era um livro in-oitavo maior. Ashe deixou-o no bar, onde_ meses depois_ eu o encontrei. Comecei a folheá-lo e senti uma vertigem assombrada e ligeira que não vou descrever, porque esta não é a história de minhas emoções e sim a de Uqbar e Tlön e Orbis Tertius. Numa noite do Islã chamada a Noite das Noites, abrem-se de par em par as secretas portas do céu e é mais doce a água nos cântaros; se essas portas se abrissem, não sentiria o que senti nessa tarde.
Eu quase chorei de rir ao reler e reler essa página hoje. Parece Monty Python. Que piedosa orfandade tinha esse sujeito Herbert Ashe, que criança solitária crescida era ele. Visitava um relógio de sol e uns carvalhos na Inglaterra. O pai de Borges estreitava um amizade com ele, verbo para a qual era excessivo. É delicioso isso. Isso é raro, não se vê muito nem entre a mais alta literatura. Uma dessas amizades inglesas que começam por excluir a confidência e que bem depressa omitem o diálogo_ que anedota sofisticada, e como Borges faz com que nos fiquemos completamente à vontade com sua genialidade, uma vez que reconhecemos a sutileza de seu amplo universo; e o reconhecemos com a morte da sisudez através do riso desbragado. Não me surpreende Vargas Llosa dizendo que um dos piores sofrimentos dos escritores latino-americanos era suplantar a vontade imperiosa de escrever como Borges. E nisso voltamos ao conto de Maupassant escolhido para a coletânea: lá pela página 291 encontramos as seguintes frases "o deserto cujo ar transparente e leve ignora, dia e noite, as obsessões", e "ao descer por uma rua inverossímil". A coletânea orgânica revela que sua consumação segue o roteiro pessoal de mostrar as influências que foram construindo os escritores Casares e, principalmente, Borges, pois essas frases maupassanteanas, repetindo o ensaio Kafka e seus precursores, são frases automaticamente assumidas como borgeanas. Talvez venha da impressão que teve Borges com esse conto parte do seu manejo artesão de adjetivos inusitados e inesperados, cujo inverossímil é bastante recorrente, e cuja quebra do período com seus usos muito particulares de apostos e vocativos é algo bem evidente para seus leitores.
Essa antologia, pois, é uma maravilha. Um belíssimo livro, que dificilmente algumas de suas outras edições pelo mundo superam essa edição primorosa da Cosac. O carinho da edição é tão atenta que, ao pegar meu volume das obras completas de Borges, editado pela Globo, para confirmar coisas sobre esse conto de Borges, minhas vistas doeram instantaneamente com a crueza da página branca da Globo. A impressão suave e a folha que absorve o excesso de luz ambiente da Cosac é só mais um mérito desse livro que parece que foi feito sob medida para mim_ o que cada leitor pensará o correspondente para si mesmo.