Não é que o romance esteja acabando, mas os romancistas é que definham. Discussão eficiente é aquela em que nosso opositor se revela com um desconcertante argumento que reverte a verdade para o lado dele. Assim, ao negar para Ernani Ssó que o que ele dizia sobre nenhum romance há 20 anos ter mais a capacidade de o entusiasmar, o que ele proclamou aos poucos se provava como um diagnóstico das minhas próprias leituras. Parei para pensar e tive que dar o braço a torcer: faz tempo que nenhuma obra de ficção me impacta. Respondi ao Ssó que de dois em dois meses eu me deixava arrebatar por um novo romance; e não que não seja verdade, mas em uma análise mais sucinta, os livros que eu leio não chegam a ser integrados ao montante de produções contemporâneas. Puxei pela memória, em um ato sistemático sincero, e dei por mim que o último romance atual que realmente me impressionou foi Os enamoramentos, publicado por volta de 2 anos atrás. Nesse quadro, entra, claro, as últimas produções de Philip Roth e Thomas Pynchon. Mas tudo o mais tem conseguido apelar apenas para minha esperança de encontrar uma nova luz frutificante nas letras, uma nova motivação e energia. Mas não é o que acontece: Franzen e Egan e Tartt, por exemplo, Gonçalo Tavares e, de modo geral, a nova ficção portuguesa, tem, trocando em miúdos, me enchido de tédio. O livro da Tartt me consumou três semanas para que eu conseguisse terminá-lo, e se eu o fiz, foi por um ato de obrigação. Para não me limitar à produção norte-americana, o citado Gonçalo Tavares nunca me pareceu realmente literatura; vejo, com todo respeito ao autor e a seus leitores, que os tantos elogios que se fazem a ele é uma transcodificação ibérica das frases puxa-saquistas que atulham as contra-capas dos romances estadunidenses, e considero o cúmulo da subserviência intelectual que Tavares aceite que o anunciem como "o Kafka português". Tavares me parece um mestre do exercício provinciano da literatura, que tem sua relevância graças ao tempo das vacas magras em que o espírito criativo passa.
Uma coisa só eu tomei de proveito da leitura de Vila-Matas: em seu romance O mal de Montano, não sei se um companheiro de escritório do corcunda narrador, ou outro personagem desse facilmente esquecível livro, diz que o último grande escritor foi Robert Musil. Isso me ficou reverberando na cabeça. Eu não conhecia Musil; eu nutria mesmo uma aversão à sub-grandiosidade de Musil, via sua estatura de grande escritor do século como uma propagação vinda do mercado negro das valorizações literárias. Respeito muito Elias Canetti, e na auto-biografia de Canetti, as tantas deliciosas páginas sobre a amizade do autor com Musil me encheram de dúvidas sobre Musil. Me parecia que Canetti confirmava meu preconceito de que o homem Musil era um reacionário intragável, e que sua obra-prima era para seletos leitores que ainda tinham no espírito a heráldica de decadentes orgulhos aristocráticos. Musil era um tratado enjoativo sobre maçonarias sociais emboscadas e mortas pela história, e só era apreciado por saudosistas anciães. Ou seja, o que eu jamais me interessaria por ler. Mas, a frase do Montano me fez comprar O homem sem qualidades. Três dias depois do calhamaço de 3 quilos me chegar, eu tive que reportar o fato ao Ssó, para completar o círculo psicológico de improváveis ideias cadenciadas: narrei o quanto Musil havia me pego de cheio, na armadilha de ler o livro no banheiro e não conseguir mais que a leitura atendesse apenas às instantaneidades distrativas da escatologias. O livro é ligeiro e muito engraçado, apesar de suas 1400 páginas, é facílimo de se ler, eu escrevi a Ssó. E Ssó me respondeu com algo que me surpreendeu, pois vi nisso que a corrente de causalidade de nossas conversas também agiam nele: ele disse que seria uma boa pedida, mas que ele havia reservado o verão para a leitura de Os demônios e Os irmãos Karamázov, esse último antes do primeiro. Eu que havia o martirizado sobre o quanto Dostoiévski era uma revitalização do deleite da leitura. E eis que ele estava a se programar para voltar ao Karamázov.
Pois bem, chego onde queria. Eu reli mês passado os Karamázov, enquanto lia concomitantemente Musil. Como é bom ler Dostoiévski! Foi um limpa em meu enfado de leitor, e uma bela nostalgia rediviva. Ler Franzen e Tartt era um sofrimento com certo deleite, que se acentuava mais a compensação da leitura por poder sair falando mal deles depois, por poder reforçar a consciência daquilo que Nietzsche dizia de que o excesso de conforto da sociedade de consumo atrofiaria os poderes do espírito no homem. Leio com alegria, na tradução fiel de Paulo Bezerra, a seguinte frase em os Karamázov: "tremendo toda trêmula" (p. 761). O tipo de frase que deixaria Ssó louco, se não fosse de Dostoiévski. O livro é recheado de defeitos assim do estilo de Dostoiévski (Bezerra e os demais tradutores do autor da editora 34 escreveram fartamente sobre o cuidado que tiveram de traduzir a linguagem de Dostoiévski com toda sua oralidade, vulgaridade e incorreção). A literatura franzeana ou tarttaniana moderna vai pelo outro caminho, do apuro estético, da excessiva eufonia ora e outra disfarçada de urbanidade lasciva, de arranjado rebolado de jovialidade iletrada. Escritores como Tartt e McEwan direto parecem que tentam suavizar o que se tornaria por demais erudito em sua escrita mascando um chiclete e comendo um x-burguer para o açúcar sofisticado da deleteriedade se incorpore em suas obras. McEwan, desde dez anos atrás, não produz nada que não seja um mascar de chicletes e um apanhar com as mãos aptas a aparecerem em propagandas de fast-food um x-burguer gordurento. Sábado, Solar, e não sei mais quantos romances que ele lançou de lá para cá estão tão incapacitados de dizerem alguma coisa genuína que a mídia cultural cumpre bem a sua inércia em apimentar o gosto dessas sensaborias com a grife do nome do autor. Se é McEwan, é bom. Em Liberdade, do Franzen, 500 páginas são gastas para costurar uma catarse do reencontro amoroso dos dois amantes que, durante todo o livro, se traem, se odeiam, se envelhecem, e talvez seja a única cena que realmente tem alguma fagulha de vida, com os dois, homem e mulher, debaixo da chuva, com fome, no frio, sentados em choro conjunto nas escadas do chalé abandonado no meio da floresta. Lembro que eu vi como Franzen escreveu essa página: com suor no rosto, quebrando a ponta do lápis e seguindo em frente em febre tirando o máximo que podia do cotoco de carbono; em êxtase. E o x da questão é que, Dostoiévski parece que sempre escreveu dessa maneira, sem concessões nem mesmo à noção européia muito em voga do beletrismo. Dostoiévski, que escreve com redundâncias excessivas, com desconexos aberradores (que tanto, é claro, devem soar maiores ainda em seu próprio idioma), rasgava seu espírito nas páginas. Não à toa que Nietzsche anunciava, apaixonado, em suas cartas, que o russo era o escritor que escrevia com o sangue.
Voltar a ler Dostoiévski para mim é voltar a me deixar possuir por um anacrônico sentimento de adstringência em respeito à humanidade. A mesma impressão que me possuiu ao assistir, ontem, um documentário pela rede Escola, sobre agro-floresta, em que um europeu que me pareceu ser a cara do Abraham Lincoln, que mora na Amazônia, pregava com uma sapiente simplicidade o contato com a natureza e a vida em respeito à natureza. Um homem de seus 50 anos, muito bonito em seu excesso de rugas, com um menininho de 3 anos, loiro, deitado em seu peito, enquanto ele fala com carregado sotaque sobre plantas e ventos, sobre o teor da terra a sobre a mata. Um leitor, um cara culto. E, em contrapartida geográfica, um caboclo de enorme inteligência, na caatinga, preenche a dicotomia do programa falando sobre sua luta para proteger o que resta de natureza na seca nordestina. Isso, essa relevância inexorável e imperiosa dos grandes temas, é que me enternece e me infla de fé com a leitura de Dostoiévski. Os escritores atuais, em suas deprimentes tentativas de realizarem o melhor, procuram os grandes temas, mas seus espíritos obnubilados não conseguem alcançar. Por isso essa nova escola de enxurrada de romancistas metalinguísticos: porque, de comum acordo, acharam falar sobre a morte do romance como a última tragédia de gabinete que simula com certo charme falar sobre os temas capitais humanos. Há um capítulo inteiro de os Karamázov, intitulado Os meninos, que por si mesmo já seria um amplo aprendizado para esses escritores voltarem a procurar o caminho certo para encontrarem o Enredo. Esse capítulo, absolutamente errático no livro, vem após o inquérito investigativo que uma comissão de procurador, promotor e comissário, faz sobre o parricídio supostamente praticado por Dmitri Karamázov. Estão o acusado e a comitiva e uma série de testemunhas, dentro de um hotel, em uma dessas províncias invisíveis anunciadas apenas por sua letra inicial, típicas nos livros do russo; há neve lá fora, a temperatura ambiente é de 20 graus negativos. Dmitri olha pela janela e vê a lama de uma estrada, e as miseráveis isbás do povoado. O capítulo do inquérito é arrastado, sufocante. Daí Dostoiévski, em sua mestria, colocar logo em seguida um capítulo carregado de graça, de diálogos do populacho, de certa leveza. E mesmo nesse capítulo_ o qual é fácil presumir que foi escrito com velocidade_ há os tantos grandes temas humanos, os quais Faulkner falou em seu discurso de recebimento do Nobel: há a proximidade da morte, o perdão, o ódio, o orgulho da fragilidade não reconhecida, a amizade.
Não é para menos pensar que o escritor atual deixou de ser um aventureiro do espírito, um filósofo social (com tudo de profundos significados que isso tem), para ser um burguês vaidoso à procura de palmas, ou o que hoje em dia se arranja para encobrir a incorreção estúpida de não se poder mais utilizar palavras desgastadas como burguês e capitalismo. Ver uma escritora como Tartt gastar todo seu nítido talento em cabrioladas ridículas para agradar o suposto adolescente de 16 anos que é o alvo pretendido de seu livro, é mais que um sinal de deterioramento das antigas vitórias intelectuais e espirituais humanas. A arte se boçaliza. Estes livros, que são odiados de ante-mão pela visão estarrecedora de suas tantas páginas, são meus best-sellers, meus passatempos preferidos, meus filmes de ação e a mais poderosa de todas as drogas. Musil está repleto de grandes temas, e de uma sublime estética inigualável. Cada um de seus arejados mini-capítulos é um ensinamento e uma descoberta sem igual. Ele tem a capacidade de amplidão através de uma enganosa pequena-coisa que só tem páreo em Borges. Musil e Dostoiévski, cada qual a seu modo, utilizam como comburente de suas obras os mesmos e triviais assuntos que Faulkner disse ser o que compõe toda a grande literatura: eles falam das únicas coisas que tem mérito para que a cada dia se tenha o interesse de se levantar da cama e seguir adiante: o amor, a honra, a humildade, a defesa dos oprimidos, a justiça, a comunhão entre os homens, a luta contra o ódio. Em um entendimento que poucos tem a liberdade aos conceitos eventuais para compreender, toda a grande literatura é socialista.