quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Uma primeira página abortada


Eu nasci bonito. Nas poucas fotos que mamãe conserva daqueles tempos de berço com véu protetor em volta, eu apareço com toda minha silenciosa presença simétrica no centro do plano. Olhos calmos fitando a câmera mambembe do alto da qual deveria sair o passarinho anunciado pelo fotógrafo. Minha harmonia de proporções era tamanha que esse meu bom comportamento provocava a interpretação de que eu trazia algum prenúncio não revelado, alguma punição não passível mais de ser adiada. As pessoas me olhavam uma vez e evitavam fazê-lo de novo, incomodadas com a verdade inacessível estampada na aberração da minha beleza.        

     Minha mãe foi quem mais sofrera com isso. Abandonada pelo homem que a havia embuchado, como ela insistia sempre em dizer, ela que tinha que suportar sem nenhum lenitivo o peso dessa realidade. De primeiro, sua astúcia de menina rejeitada a fazia simular toda espécie de doenças para que não tivesse que me amamentar. Esfregava alho com urtiga nos sovacos e arnica-do-campo nos mamilos, dormia calçada com meias apertando os pés cujos dedos entremeava com pedaços de folhas de coroa-de-cristo, de forma que a febre resultante dos eczemas a fizesse ter delírios, o que convencia por certo tempo que haveria algo de perigoso conceder-me à proteção de uma criatura de saúde tão instável. O pai de minha mãe_ que vivia em um isolamento totêmico em que raras as vezes se tinha a audácia de invoca-lo para assuntos comezinhos_ mandou baixar até a casa uma ama-de-leite. A mulher não chegava aos 15 anos mas tinha aquele olhar duro resultante da completa adaptação às atribulações naturais que a fazia intocada à maledicência cotidiana, e que estendeu-me seus seios por algum tempo, pelo tempo suficiente para que em minha mãe despertasse o instinto materno que antes recusava, depois que ela viu a inevitável correlação de santidade entre dois seres angélicos, um sentado em serena entrega no leito e outro em um sono saciado no centro dos seus braços. Reivindicou com a mesma obstinação furiosa de antes que seu rebento lhe fosse devolvido. Por uma semana minha mãe sustentou a farsa de que admitia com o coração ponderado que eu era um bebê normal, cantando cantigas de ninar para embalar meus sonos, estendendo-me com fartura o bico de seus peitos não mais salpicados de feridas de arnica, ainda que fizesse de tudo para que seus olhos não confrontassem com os meus que, impreterivelmente nessas ocasiões, se fincavam nos dela com infinita malícia. 

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Sir Richard Francis Burton, uma biografia



Agradeço ao Paulo Raviere pela indicação desta fantástica biografia. Sir Richard Francis Burton é uma personagem menos interessante que T. E. Lawrence (e muito menos genial em seus conflitos interiores), mas o autor, Edward Rice, transforma o livro em um deleite raro ao mostrar com claro detalhismo as circunstâncias históricas e ambientais do seu herói. A segunda melhor biografia que eu li _ ainda perde para a magnífica de Darwin, da dupla Desmond & Moore. Quando me deparo com um livro tão envolvente, sempre me lembro do Paulo Francis dizendo "drogas para quê?". Segue um trecho memorável (o livro como murro na cara para nos mostrar sempre que existe muito, muito mais além de nossos umbigos):

"E havia também o costume de urinar que Burton tinha de seguir de maneira ainda mais automática. Os muçulmanos, como a maioria dos ocidentais, urinam acocorados e, quando terminam, enxugam o pênis com uma pedra ou um, três ou cinco bocados de terra ou argila, dependendo do costume local. Existe uma história que já foi várias vezes repetida: na viagem a Meca, viram Burton distraído, atendendo ao apelo da natureza de maneira não-muçulmana, urinando de pé, na posição ocidental; para salvar a vida, ele teve de matar a pessoa que o viu; é uma lenda que ele tentou desmentir, apontando a dificuldade de urinar de pé com aquelas roupas árabes que estorvavam os movimentos. Mas não há dúvida de que Burton tinha a fama de ter matado um homem a sangue-frio; no entanto, seu detrator Stanley Lane-Poole gostava de comentar que Burton "admitiu um tanto constrangido que nunca matou ninguém em momento algum". (tradução de Denise Bottmann)

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Leniência



Eu estava comendo um damasco seco quando meu dente incisivo, naqueles silêncios de pesadelo que mostram um terror irreparável, se partiu ao meio. A língua e a gengiva emitiram o sinal de alarme de que alguma coisa estava seriamente errada no preciso processo da mastigação, e a língua, em uma mecânica automática, se me estica boca afora e entrega o objeto estranho em minhas mãos. O olho com o reconhecimento paulatino da miséria que é a condição humana, em seu realismo mais restrito, e sinto uma infelicidade por todo meu ser: uma desproteção antropológica que há muito tempo não sentia. Fico com o pedaço amarelecido na mão, e nada é mais feio que um dente partido, mais denegridor, mais excludente. Percebo que em toda minha vida eu fui massacrado por terrores na solidão da noite em me ver sem dentes, em sonhar que meus dentes se deslocavam, caíam, esfarinhavam como um giz que aparecia de súbito ser impossível se manter em minha boca. Lembro de todas as peripécias de minha mãe em me levar, naquela época de severas privações financeiras, a inúmeros enchumbadores de dentes. Cada um se conserva em minha memória como uma entidade única: o homem com cara de criminoso, de jaleco sujo, de barba por fazer e com um azedume lacônico contra o mundo que me apavorava. Seja qual aspecto espúrio essa entidade possuía, era ela que erigia aquelas lápides cinzas da amálgama por sobre o túmulo em que sepultavam a dor em minhas gengivas, e me trazia alívio. Daí me recordo qual foi a última vez em que senti esse desolamento profundo: foi justamente quando esse mesmo dente se partira há quase 25 anos. Eu era um jovem magricela, meio sem rumo na vida, fazendo faculdade mas completamente desmotivado com tudo. E em uma bela manhã, no pátio da universidade, o dente se parte e minha língua faz sua primeira entrega policialesca daquele fragmento rejeitado para minha mão. Eu tinha 18 anos, ou 19, e aquele dente da frente quebrado, no auge da minha vaidade, me fez sentir ainda mais minha condição de segregado. Eu sabia que minha mãe não teria dinheiro para um dentista. Eu sabia que não estava preparado para viver com aquele novo sinal de pobreza em mim, tão violentamente evidente. Eu saí do pátio, peguei um ônibus e desci perto de casa. Não abria a boca, mas não conseguia parar de raspar a lâmina que sobrara do dente com a língua. Só para ver quanto ficaria uma reparação, entrei em um consultório que só então descobrira próximo de casa. Sabia que seria um preço impossível para minha mãe pagar, porque era um consultório de verdade, com um dentista de verdade, e não um enchumbador clandestino. A dentista, uma mulher jovial de cabelos negros _ que me causava ainda mais vergonha pela deformação na boca_, examina o problema, me encaminha para sua secretária para que esta faça o orçamento, e antes que a secretária complete os números das possíveis parcelas e sobre o desconto no caso de um pagamento à vista, eu me despeço dizendo que não daria, estava sem dinheiro. Quando estava para atravessar a rua, a própria dentista me chama: "Vem cá, vamos ver o que podemos fazer". Talvez foi a primeira vez em minha vida que uma concessão assim estava prestes a acontecer; talvez ela orquestrava um desconto; talvez ela ofereceria um trabalho panorâmico de restauração de outras pequenas falhas que havia visto em meus outros dentes; talvez iria dar de brinde um tratamento de flúor: eu me sentei de novo na cadeira inclinável e me encolhi de vergonha diante ao que parecia ter que dizer mais uma vez, após toda a exposição, de que não haveria meios para isso. Para meu assombro ela começa a mexer em meu incisivo. Leva uma meia hora ou mais, e conclui dizendo: "Ficou tão perfeito que eu poderia assinar aqui embaixo". (Lembro-me claramente dessa frase, e um quarto de século depois as surpresas da memória evocam o timbre maroto de sua voz, uma certa estridência que o rapaz que eu era então associava a algo da classe abastada, de filhas criadas em paz com uma efetiva margem de carinho paterno, de cultura, de uma bondade perigosa diante a qual eu sempre me sentia perigoso, com a qual uma brutalidade indisfarçável da minha parte iria trair-se revelando para o choque de um coração tão bem moldado que eu não estava apto a suportar tamanha leniência.) Eu já sabia, mas tinha que perguntar, e a pergunta me tornava ainda mais tremulamente miserável: "quanto foi?". Ela sorriu com todo cuidado, de modo a que passava longe de qualquer possibilidade de me ofender, e me disse que não era nada, era de graça. Fez isso sem ostentação. Eu agradeci, sem efusividade, e ela me disse: "olha, só vai durar 10 anos, depois você terá que refazer". E há duas semanas, com a lasca que ela tão bem colocara em meu dente que nem eu mesmo me lembrava que era uma restauração, grudada em um pedaço de damasco, finalmente vencera o prazo de duração. Fiz a restauração em um dentista daqui da minha cidade, caro, pra lá de caro_ imagino quanto seria naquele tempo em que a odontologia era ainda mais exclusiva. Indigno-me comigo por ter passado todos esses 25 anos sem me lembrar disso, sem pensar na dentista, sem sequer me lembrar do nome dela. Há muitas questões aí: o fato de que eu me sinto cada vez mais combalido e reservado com toda impressão de completude pessoal, cada vez em que envelheço mais. O medo que eu sentia naquele labirinto da juventude. Mas não foi ingratidão. É forte a tentação de tecer a frase "em um mundo cheio de ira e egoísmo..."; mas não é assim. O mundo é cheio de medo e incomunicabilidade, de tal forma que a bondade aparece no esforço de se afirmar-se a cabeça para fora do invólucro como uma leniência, uma tentativa sempre mal ajambrada, sempre suspeita, sempre titubeante. Assim me parecera aos 18 anos, mas não mais agora. Agora apenas me parece que até a validade que ela colocou em seu ato totalmente despojado e sem motivos práticos a não ser o de tornar mais fácil a vida de um jovem que ela via em todas suas fragilidades, estava investida de modéstia. Durou quase 25 anos, doutora.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Quermesse dos psicopatas



Uma das vergonhas maiores da indigente realidade brasileira atual é que alguns dos formadores de opinião com mais seguidores por essas excrescências virtuais são oriundos do meio do rock. Temos Lobão, temos Tico não sei o quê, e, pelo que descobri ontem, temos um guitarrista de uma falida e obscura banda de metal que, assim como seus páreos, adotou o hobby de vaticinar suas iras "políticas" em um canal do youtube. Conhecedor que sou que esse país é um circo desnecessário e anacronicamente sempre fanático pelo atraso, retive minha capacidade de espanto ao ver que tal sujeito tem "500 mil seguidores no Facebook". Respeito o impacto dessas cifras, embora tal coisa me pareça incorrigivelmente insignificante. Pois bem, incorri na curiosidade de tentar assistir a um vídeo desse astro cibernético ontem, em que o futuro presidente dessa pocilga, conhecido por Jair Bolsonaro (o Brasil requerendo garbosamente seu papel de destaque nos livros de história desse século XXI, predito a ser mais violento e bestial que o século passado, avoé!), lhe concede uma entrevista. O guitarrista falido, um tipo branco, barbudo, com os cabelos tratados indo até a cintura (uma das perguntas recorrentes nos comentários: que shampoo você usa?), começa com uma longa parlenga sobre deus, Cristo, afirmando que esses são as presenças mais importantes e capitais em sua vida. E daí ele pergunta o que Deus representa na visão do presidente antecipadamente eleito Jair Bolsonaro. Daí por diante, eu paro de assistir_ assisti 5 dos 75 minutos que tem o programa. Não aguento; além das minhas forças. Antes de desligar vejo o primeiro comentário com um fio de esperança. Um questionamento educado e inusitadamente inteligente de que a política e as questões sociais não deveriam passar pelo crivo da crendice religiosa. Um comentário bem posto e bem escrito de uma moça. O sujeito, depois de falar de Cristo e Deus, o que responde? Umas 6 linhas de fúria descomedida que se encerram chamando a moça de "vagabunda". Eu acredito que Bolsonaro ganhará a presidência daqui a 2 anos. Tirem aí as conclusões.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Diários II, de Susan Sontag



Susan Sontag deve ter sido uma companhia maravilhosa. A felicidade que ela tinha pelas ideias e pela arte, sua total e absoluta dedicação ao pensamento, não deve ter passado batido para sua simpatia pessoal. Em tudo o que ela escreveu tem espírito. Em cada um de seus magistrais ensaios há êxtase, contemplação, engajamento, sinceridade, profundidade e leveza. Ela transformava os assuntos mais descansados e intranscedentes em uma revolução contra os conceitos instituídos. Foi graças a ela que coisas que antes eram tidas como lixo ou temas que não eram de bom tom mencioná-los, passou a serem vistos como alta cultura, como expressão artística relevante. Graças a Sontag vários escritores importantes, mas que estavam afundados em seus esquecimentos étnicos, foram trazidos para o centro da mídia cultural mundial. Ela destrinchou vários artistas obscuros; uma menção dela fazia com que esses criadores se tornassem notícia e alvos de uma irrestrita atenção. Mais ou menos o que Borges fez com vários autores esquecidos. A Companhia das Letras presenteia o leitor brasileiro neste final de ano com o segundo volume de seus deliciosos e imprescindíveis diários. Neles se vê, ainda mais que em seus ensaios, o quanto Sontag era uma energia comburente inesgotável. Feitos de fragmentos pequenos de textos e anotações soltas mas regradas, esses diários são uma fonte valiosa sobre as ideias, a fé imbatível na escrita e na literatura, e o rico cotidiano da autora com seus encontros com escritores e artistas de todos os nichos. É simplesmente uma delícia lê-los. Este segundo volume é mais generoso: tem 580 páginas, 250 mais que o primeiro. Sontag era inesgotável em ideias: aqui há enredos de romances, silogismos sobre todos os assuntos, listas de seus melhores livros, cronologias sobre seus projetos, segredos, conversas secretas. E em tudo, como eu disse, há espírito. É uma festa!

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Lendo Hermann Broch



Estou lendo "A morte de Virgílio", de Hermann Broch. Os escritores em alemão tem algo muito idiossincrático, que os tornam bastante distintos das outras literaturas. Eles acreditam profundamente que a literatura é algo sagrado, algo que possibilita que eles entrem em contato com Deus. Mesmo não acreditando em Deus, mesmo sendo avessos a toda ideia de espiritualidade, não há outros escritores que empreguem tanta espiritualidade na forma como escrevem como os da literatura em língua alemã. Eles não são estetas da palavra concisa como alguns russos, que também são escritores divinatórios; eles, pelo contrário, são palavrosos, cerebrais, olímpicos, pretensiosos ao extremo, brutalmente seguros da importância de seus papéis em manejarem algo tão poderoso e aristocrático quanto a escrita. Quando Grass ganhou o Nobel, me recordo de um crítico nacional dizendo que um escritor brasileiro jamais ganharia o prêmio porque este não se leva a sério. Os que escrevem em alemão não tem medo de ficarem loucos, de se tornarem mendigos (Musil assume quase essas duas realidades), de serem odiados, de serem perseguidos. A escrita é o templo deles, é o que lhes basta. E todos eles passam isso para o leitor, essa autarquia estética e ética, essa felicidade que é a maior de todas as felicidades, essa Missão. É assim que me deleito com esse romance de Broch, aceitando o convite. Enquanto o leio_ a mesma sensação de quando leio Mann, Musil e Grass_ sinto que nada mais importa, a não ser a sua leitura. É uma leitura tão inexoravelmente elevada que fico esses dias em um estado de imolação extraterrena, a mesma coisa que eu sentia quando me submergi em "O homem sem qualidades" ("Você está me chamando para me preocupar com isso? Sabe, por acaso, que eu estou lendo Musil?")

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Um duelo



Vi o especial da Globo News sobre Bob Dylan. O mais legal foi ver Paulo Henriques Britto falando que Tarântula, o livrinho de variações despirocadas do Dylan que ele traduziu nos anos 80, é o que é, um livrinho de variações despirocadas, e que se fossem procurar a relevância literária teriam que ir nas letras. O repórter pediu que ele lesse um trecho de sua tradução, e o Paulo, muito senhor de si, leu algo que ele sabia que iria soar como uma capa de caderno rabiscada de um colegial. Quando da repercussão do Nobel, haviam 4 Tarântulas na Estante Virtual. Custavam acima de 100 reais, e uma outra acima de 200. Mas havia uma que custava 49 reais. Como nesses filmes em que muitos consumidores enlouquecidos se veem parados diante uma gôndola de supermercado com um só produto em promoção que sobrou da devassa, eu corri para efetuar o login e comprar o livro. O livro caiu no carrinho, mas, quando fui concluir a compra, a coisa travava. A página caía em um fundo em que se dizia "não foi possível acessar essa página". Eu vi claramente o livreiro ensandecido do outro lado tentando com todas as forças fazer com que eu não efetivasse a compra, para que voltasse com o livro super-valorizado. Ficamos nisso por horas, eu voltava à página e o volume continuava em meu carrinho, mas não conseguia comprar. Jantei, tomei meu vinho, brinquei com a patota ouvindo Bob Dylan, e de ora em ora ia lá brigar com o vendedor, puxando com um supetão a beirada do livro que me cabia. Fiquei com o note ligado a noite inteira, com a página na Estante Virtual. Só lá pelo meio-dia do outro dia liberei o cara. Eu estava aliviado em não comprar um livro apenas pelo fetiche que aliás eu nem tinha. Como último floreio da espada eu escrevi uma mensagem para o livreiro dizendo que se ele quisesse me vender por 50 pilas, incluso aí o frete, eu comprava, que o livrinho era ruim e não valia mais que isso, e que logo seria republicado e ele ficaria com aquela velharia estocada. Ele me respondeu que passaria a proposta, no que eu notei uma revigorada ironia em ter ganho a parada. Duas horas depois vi que ele pedia 110 reais. No final da tarde voltei a acessar, e não havia mais nada.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Mais uma vez o prêmio Nobel



Aventa-se que tal prêmio homenageia a literatura beatnik, a contracultura libertária, certa apologia das drogas, certa vivacidade da língua jovial, o coloquialismo e a renovação meio bandida e anti-acadêmica da prosa poética,e, além do mais, é um cachimbo da paz com a literatura norte-americana. Então por que não deram o prêmio para o maior escritor norte-americano vivo, Thomas Pynchon, que representa isso tudo muito mais que Dylan? Pynchon tem uma legião de fãs apaixonados, assim como Dylan. Se a mulher tivesse dito "vai para Thomas Pynchon", seria uma convolução no mundo cultural, mais do que com Dylan. Estaria-se discutindo avidamente sobre literatura no mundo todo, em vez dessa bobeirinha efêmera que acontece e já está se apagando em torno do Dylan. Haveria uma super-exposição bastante positiva sobre modernidade artística e sobre o pós-modernismo nas letras _palavras pomposas e vazias no caso de Dylan, mas que se encaixam bem no caso de Pynchon. A academia sueca deu, na verdade, foi um tiro no pé se pretendia causar polêmica e chamar os holofotes para si. Se tivesse dado o prêmio para Roth seria uma reação morna, esperada, mas se desse a Pynchon seria um furacão de renovação na crítica literária e no mercado livreiro. Mas em vez disso, eles cometeram essa patacoada. O que reforça mais uma vez que literatura já não é mais o que importa para a academia.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Boêmios


Valter Hugo Mãe disse que trocaria seus 7 livros por um filho. Cada filho é um universo diferente. Minha filha Júlia quase nunca me diz "eu te amo", por isso quando o diz, sempre apaixonada, quase me leva às lágrimas. No dia dos pais, seus colegas da escola escreveram nos cartões de presente "Eu te amo, papai", ela me escreveu "Papai é meu puxa saco". O Eric recolhe uma pedra do vaso de plantas que temos na sala e a leva à boca; dou-lhe uma reprimenda: "Na boca não!"; ele engatinha a relativa distância entre nós dois, e me entrega a pedra; eu lhe digo: "Você pode brincar com a pedra, só não a coloque na boca", mas ele abana a mão negativamente querendo dizer: "Não, meu chapa, fique com essa sua pedra, parece tão importante para você", e vai se ocupar com outras coisas. Essa foto foi tirada pela Dani às 5 da manhã de hoje. O Eric acordou às 3 da madrugada e se recusava a dormir, e eu o trouxe à sala, embalei-o entre minhas pernas ao som dos Brandenburgo. Quando a Dani nos viu, ambos já estávamos afundado no mais profundo sono, e no aparelho de som rolava Live Evil do Black Sabbath. Minha admiração por Valter Hugo Mãe cresceu, tanto que na lista das compras dos livros do próximo mês dois títulos dele estão agendados. Sim, Mãe, filhos são muito bons! A impressão é que esse anarquismo completo na ordem do dia (e da noite), é uma das coisas que mais conta nessa felicidade. Vou restabelecendo o contato duramente cortado para que se possa ler e escrever nessas horas inesperadas, em que são por total e irrevogável direito deles.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Ler Wislawa Szymborska é rejuvenescer



Por serem tão poucos, cada poeta que me marcou tem seu momento temporal em que entrou em minha vida bem guardado na memória. Eliot foi-me apresentado no colégio, com as incipientes discussões filosóficas de minha classe de amigos. Os homens ocos era um hino elegante que nos alertava de uma distante maturidade contra a qual deveríamos nos manter em guarda_ e ter acesso às raríssimas edições de Quarta-feira de cinzas era ler agraciado um antigo evangelho pós-cristianismo. Uma tarde em que eu vagabundeava matando aula da universidade me deparei com O canto da estrada aberta, de Whitman. Estava em um volume velho de poetas universais em uma biblioteca na praça universitária, e não sei se foi por curiosidade em ler um poeta que meu preconceito identificava imediatamente como o representante falconesco da América imperial que me movera a lê-lo, achando eu que meu repúdio iria vir com fiel precisão. Sentei-me no chão entre as estantes e quase chorei diante aquilo. Era tão arrebatadoramente belo e verdadeiro, tão selvagem e celestial e ao mesmo tempo profundamente humano, que eu tinha que parar a leitura por alguns segundos para poder respirar. Foi a primeira vez, creio, que eu cogitei além de meros exercícios fantasiosos em abandonar tudo e seguir o que aquele cara ordenava. Livre e saudável, sigo pela estrada aberta. Era um livro que não se podia retirá-lo da seção especial em que ele ficava e levá-lo para o andar debaixo para a máquina de xerox, de modos que ia todo dia para copiá-lo à mão em meu caderno. Recito esse poema ainda hoje e o farei para sempre; sei-o de cor em português e em inglês. Uma noite de chuva peguei um ônibus vazio e fui até o shopping comprar uma coletânea do Seamus Heaney, um poeta telúrico bastante idiossincrático que surpreendentemente também se tornou fundamental para mim. Eugenio Montale eu conhecia desde a minha adolescência e o admirava, mas ele só foi entrar em minha vida de vez em uma etapa das mais difíceis em que o lia com a mesma fé com que alguns leem os Salmos. Thiago de Mello é o único que escreve em português que os caminhos erráticos e incompreensíveis da minha admiração aceita como imprescindível_ foi um grande amigo que me apresentou e meu amor por ele conta com reminiscências muito pessoais. Resta mais 4 poetas fundamentais. Maiakóvski é um dilema: odeio e amo na mesma medida, e não vivo sem ele. Salvatore Quasimodo tem sempre uma palavra amarga sobre tudo que me consola de uma maneira serotonínica. Juan Ramón Jiménez é meu poeta infantil e menor que me provou que há poetas menores que tem a mesma estatura espiritual dos gigantes, e é fundamental justamente porque a preguiça do idioma simplifica as coisas com esse erro estratégico de conceituar o conteúdo através de medidas volumétricas que não dizem nada. A outra poeta eu conheci há 4 anos, o que infere que cada um deles apareceu concordante com o encaixe exato em meu processo de maturação como indivíduo. Pois Wislawa Szymborska é uma mistura de todos esses outros poetas, com o acréscimo de fazer pouco caso de si e não ter o mínimo espalhafato vaidoso de achar que sua poesia seja libertária, revolucionária, meiga, iconoclasta ou que traga uma mensagem espiritual subliminar. Analisando a linha dessa minha apreciação tem-se um retrato bastante significativo sobre mim mesmo, sobre o que eu sou_ o que me espanta. É como se eu tivesse nascido com minhas necessidades estéticas e minha sede pelo aprendizado que vem da poesia já prontas, e meu único dever era descobrir passo a passo os poetas previamente assinalados que preenchiam essa cabala. Wislawa, julgo, é o desfecho de tudo que a poesia em não-prosa tem para enriquecer a minha existência. Todo o estrondo dos outros poetas continua quando os leio ou os recito de cor, mas na casa dos 40 anos, a sabedoria despojada de Wislawa, seu honesto hedonismo pela vida, sua nota embargada de velha senhora nonagenária que sobreviveu a tantos terrores da história, me cala profundamente e me acalenta de uma forma que hoje é dela que me sinto mais próximo. É uma escritora que atingiu há tempos a real compreensão de seu ofício, descarregou-se de toda pompa e todo fardo dos clichês modisticos de como um escritor deve se apresentar, e tal lucidez está em cada uma de suas obras: uma maturidade humana plena, uma voz que se desobriga da tolice de qualquer virilidade para se fazer ouvida, uma nudez belíssima em que a esbelta senhora explora sua visão desse mundo com essa sabedoria rara que se refresca com um falar para si mesmo que vai além da literatura. Nesse segundo volume de poemas que ora a Companhia das Letras lança da Wislawa no Brasil _ um fato que atesta o quanto ela é querida por aqui, visto que poucos poetas, mesmo os nobeliados, conseguem permeabilidade de vendas que autorize a publicação de outra obra_ , lemos ela dizendo em seu discurso em Estocolmo que não se considera uma boa poeta, que não faz poesia "muito bem". Em certo sentido, é isso que o leitor percebe, e os leitores superficiais somam na balbúrdia dos estúpidos da web comentários de que é injustiça premiar Wislawa e não poetas maiores que ela (como, certa vez vi citado, Cecília Meireles, na sempre tosca cobrança de ufanismos patrióticos). Eu percebo que Wislawa nunca se importou com isso; o que ela escreve vai além da poesia, é uma forma de expressar sua mais íntima experiência de vida através de observações que, mesmo as mais pueris, são carregadas de um espontâneo arrebatamento. Não é raro uma lágrima fugaz escorrer pelo rosto quando se a lê, nem deitar o livro no colo e ficar olhando o tempo com um maravilhamento novo. Ler Wislawa é rejuvenescer. 

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

A Júlia e o blog vão fazer 6 anos



A Júlia com 1 ano, e a Júlia e o Eric


Eu sempre falo que comigo todos os clichês da redenção pela paternidade aconteceram. Eu só descobri o que é mesmo o amor depois de ter filhos; eu só descobri o que é a felicidade plena depois de ter filhos; eu só descobri o quanto devemos respeitar milimetricamente cada pessoa e todo mundo depois de ter filhos (porque todo mundo é filho de alguém); eu só entendi de forma profunda o quanto meus pais me amaram, e o quanto eu lhes dei motivos para preocupações, depois de ter filhos. A Júlia me mostrou que eu não poderia amar duplamente um ser como eu a amo, e aí veio o Eric e me provou que eu posso, porque amo os dois da mesma maneira e na mesma intensidade. Fico os olhando por horas, enternecido, carregado de orgulho e mágica por eu ter contribuído por tamanhas perfeições. Um dia um colega meu criticava para mim a "coragem" de um amigo dele em expor seu filho recém nascido no Facebook, porque o menino havia nascido com o lábio leporino, e eu, antes mesmo de me conter, respondi a ele me admirando o quanto ele era estúpido em falar algo assim, porque um filho meu poderia ser de qualquer jeito que eu sentiria absoluto orgulho dele. A primeira gravidez da minha esposa, a Dani, foi de altíssimo risco, e o médico nos dissera com sinceridade que o bebê poderia nascer com alguma deficiência. Eu amaria a Júlia mesmo se ela tivesse nascido um rabanete, e ela nasceu minúscula, murchinha, cabia quase na minha mão; nasceu com uma imensa fragilidade de forma que eu tinha receio em pegá-la e machucá-la sem ver. O dia que eu as trouxe_ a Dani e ela_ para casa, enfrentamos uma chuva intensa na estrada, e viemos ouvindo no carro todo tipo de música abençoada, Pink Floyd abençoado, Led Zeppelin abençoado, Van Morrison abençoado, porque eu dirigia em estado de graça vendo as duas lá atrás pelo retrovisor, o ratinho rosa que era a Júlia em volta em mantas dormindo no bebê conforto, e o olhar da Dani repetindo o meu com o brilho do êxtase, a descansada e vaidosa plenitude da maternidade e da paternidade. Nós sabíamos que nada de ruim poderia acontecer com a gente. Chegamos à casa antiga em que eu morava, minha casa de solteiro caindo aos pedaços, com a auto-suficiência aristocrática dos permanentemente saudáveis e felizes, e colocamos a Júlia no berço junto à nossa cama e ficamos babando em cima dela, a menininha que, aos 3 meses de gestação, a Dani recebera o prognóstico de que ela tinha uma margem pequena de chance de nascer. E agora ela estava ali, o milagre do qual nunca duvidamos (o milagre do qual eu tinha tanta certeza que nem cheguei a pedir a Deus). Cinco anos depois, o médico da Dani autorizou que tivéssemos mais um filho; em uma semana engravidamos e sentimos o mesmo deslumbramento da gravidez. E aí nasceu o Eric, uma bola grande e gorda que era fisicamente o oposto da irmã. Hoje ele já está esbelto e dando seus primeiros passinhos pela casa. Amanhã será a festa de aniversário de 6 anos dela. As avós estão em casa e mais uma turma de amigos e parentes. E a vida, a resiliência e a ausência de medo, o amor e a luz, são sempre maravilhosos.

sábado, 17 de setembro de 2016

Leitura, a falta que você me faz



Já nas primeiras páginas o Gaspari fala do quanto o militarismo era corrupto, com fraudes na construção de hidrelétrica e dos planos de construção da bomba nuclear brasileira que custou, na época, o desvio de vultosos 30 milhões de dólares dos cofres públicos_ projetos que nunca chegaram a ser finalizados porque, além de corruptos, os militares eram muito ineficientes (a única coisa que sobrou do projeto da bomba atômica, diz o autor, foi um buraco de trezentos metros de fundura em que os sábios cientistas da ditadura intentariam explodir as bombas experimentais, valha-me santa Sucupira!). Gaspari_ que deve muito de seu estilo a Garcia Marquez_, brinda o leitor com uma impagável descrição carregada de ironia da "bravura" e "pragmatismo" dos generais e coronéis, apontando como eram bons em acumular papéis em seus escritórios e ficarem com suas caras de sono suportando o expediente até o fim. Aí vem essa gentinha miúda e iletrada, que infelizmente grassa em grande quantidade por toda a geografia, querendo a volta da ditadura, elogiando a austera "pobreza" dos presidentes e altos caciques militares após o fim do regime. Como a falta de leitura e o completo desinteresse pelo conhecimento é de extrema letalidade.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Molares



Por alguns anos acreditei que para fugir da história bastava me forçar a uma profunda estupidez onírica. Minha aparência típica de um médio-europeu me ajudava nisso, meus olhos próximos, os músculos da minha boca em um sorriso imutável da vítima evadida das circunstâncias, meu nariz que quase se tornava uma cartilagem seca quanto mais velho eu me tornava, e minha estatura que remetia aos lacaios dos romances sociais russos do século XIX. Exerci com perícia uma cara de quem só entende sobre suas pequenas preocupações cotidianas, estando num limite bem aquém de se interessar por notícias. A sociologia sempre superestimou a inteligência; o começo da libertação era se fazer acompanhar com um tratado político nas noites de descanso da fábrica. Trótski estudando nos vagões de carga dos trens siberianos até São Petersburgo; as prisões reformuladas por Stalin para que seus segregados não usufruíssem da distração estratégica dos czares em tornar os livros acessíveis para os presos do regime. Até um Onassis catando guimbas no porto, o horizonte de suas possibilidades ampliando-se em seu cérebro turbinado, se trata de uma desfaçatez na compreensão de como o homem comum programa o uso de sua vida. Para a maioria de nós, a única e verdadeira bênção é ser capaz de se exorcizar dessas ilusões do heroísmo individual criadas pelo rancor daqueles que tem um conceito fanatizado sobre a derrota. 
                 Não que eu não tenha minha parcela de erudição. Formei-me em história em meus anos de juventude na Hungria, mas meu pé no chão quanto a cobrar meu lugar de conforto pelo mérito está longe de ver alguma ironia nisso. Cheguei a escrever para um jornal de oposição ao regime que então recém se instaurara, e a tentação de botar meu senso da verdade em jogo em nome do heroísmo não foi pequena. Tive que fugir pela fronteira junto ao grande rebanho de ameaçados de morte. Cheguei a Londres sem falar uma palavra em inglês, e um senhor me aceitara como guarda noturno de seu cinema. Eu dormia em um quarto ao lado da sala de projeção. Nesses dias me serviram muito mais que meu diploma a felicidade lembrada de meu pai quando retornei de meu primeiro dia com a caixa de graxas para sapato nas costas. Um reconhecimento sagrado de cumprida sua missão paterna. Meu pai já havia desaparecido quando me servi de sua mensagem; morto pelo desgosto com um ataque cardíaco fulminante na mesa de jantar. Muitos de seus antigos companheiros não tiveram a mesma disposição em exigirem bem pouco da Musa Iconográfica. No jornal, até conhecidos meus das mesas ao lado resolveram pelo suicídio. Naquele quartinho apertado, ouvindo as vozes dos filmes que contavam sobre assassinatos em preto e branco para uma plateia de casais de adolescentes, eu agradecia a meu pai. Minha cara foi se tornando ainda mais adequada à condolência desatenta das pessoas. Vocês não sabem, por exemplo, o poder que é não ter os molares. Fui perdendo-os paulatinamente depois dos 30 anos, vítima não da falta de higiene, mas de um processo de descalcificação que aprendi a aceitar como natural devido a estar longe da minha raiz. Confesso que me era impossível fugir da nostalgia do frio, das cornijas carregadas de gelo das casas, da neblina de 20 graus abaixo de zero. Nas pessoas susceptíveis isso provoca a queda de cabelo, o câncer; em mim fazia cair meus dentes. A distância entre uma foto minha ainda rapaz, tirada no estribo da faculdade, em que apareço com um sorriso encenando confiança, os incisivos brancos e fortes parecendo imunes à deterioração, e como estou hoje, é enorme. Um de meus incisivos foi se desgastando até ficar a metade do tamanho, e se entorteceu, tombando para a esquerda pelo seu próprio peso. Era impossível eu ver; nos espelhos parecia que continuava em sua densidade juvenil; até que uma senhora em uma fila do açougue o mencionou simpaticamente. Eu achava que a dentição era um dos assuntos vetados para os ingleses, mas ela sorria e me apontava meus dentes como se falasse de um detalhe peculiar em uma luminária de rua. Ela, inclusive, foi quem me esclareceu sobre essa ideia de que meus dentes foram se enfraquecendo por eu estar longe do “lar”. Morar nesses bairros planificados e nessas charnecas assoladas pelo fog, tendo a chuvinha miúda constante por sobre os guarda-chuvas, dão uma crença sagrada ao conceito de “lar”. Eu posicionava dois espelhos contrapostos para poder ver meus incisivos da maneira certa, mas eles me pareciam normais. Tirei uma foto 3x4 com um sorriso que estranhou o manejador da máquina, que deve ter juntado isso a todo o resto de meu aspecto para me achar um abobado, e corri para casa para apreciar da devida forma aquela revelação. Eram horríveis, amarelados, placas bacterianas incrustadas nas laterais como hera em crescimento progressivo. Fiquei horas no quartinho olhando embevecido a foto, e pensando o quanto é tendente estarmos sempre enganados quanto a nossa destruição. Há sempre um resquício de vaidade a ser eliminado.
             Pois bem, o cinema pegou fogo e eu tive que sair de Londres antes que as investigações avançassem. Alguma manifestação juvenil; coquetéis molotov atirados indiscriminadamente em bancos, universidades, delegacias e no meu cinema. Os jovens revoltados com o sistema não faziam distinção, ou talvez a coisa fosse muito sutil para que eu percebesse. O cinema passava filmes ingleses de produtores locais, açucaradas novelas de campo, nomes que eram difíceis se lembrar no momento quanto mais depois de tantos anos. Adaptações de Jane Austen e Trollope feitas com verbas do departamento de cultura. Essa expressão de uma frivolidade regimentar implantada de alto para baixo deve ter deixado alguns daqueles jovens leitores da escola de Frankfurt sem paciência. Embora o que eu via nas ruas era a mesma grandiloquência exagerada da procura pela mudança, pessoas que pregavam panfletos nos postes e tinham olhares esgazeados, sob o efeito de drogas modernas. Talvez seja romantismo supor que eles tivessem um pensamento com nuances complexas para atacarem um cinema por causa dos filmes que passava. Assim como eu não me atinara à destruição de meus dentes, eu sub-repticiamente superdimensionava a inteligência.
            Na fuga levei três caixas de filmes. Queria devolvê-las para o generoso senhor que me dera abrigo. Algo do bom-mocismo de meu estoicismo pessoal me contaminara, eu achava que seria enternecidamente condizente com minha insignificância mostrar aquelas preciosidades resgatadas para ele. Na certa havia uma astúcia em ganhar com isso algum outro abrigo em um possível local seguro, onde eu poderia continuar com meus pequenos estudos e minha pequena vida em geral. Mas de novo a história passava com sua patrola indiferente ao que estivesse embaixo na terra, sem querer contemporizar com os vermes (sei que é um termo coloridamente autoindulgente e exagerado, e que ninguém se oferece em tamanho sacrifício à sobrevivência assim, mas deixem que eu continue).  Nos jornais noticiaram o incêndio do cinema sem que se fizesse referência ao cigano que pernoitava em suas instalações (para a apressada visão coletivista da época, todos nós, húngaros, armênios, tchecos, éramos ciganos), mas era fácil sentir as investigações em sigilo da polícia local apontadas para todas as nuances exóticas. Lembro que peguei um navio três ou quatro dias depois, e jamais pude me encontrar com ele. O navio tinha um desses nomes institucionais, Saint Ethiene, HMS Victory, não mais que uma sucessão consonantal para o não-emigrante estrangeiro; para mim parecia uma ortodoxia já esvaziada de sentido de uma religião antiga, que minha não participação esforçava-se para não pensar em sua fria função de me expulsar, me mandar para bem longe.
                 Foi quando cheguei em São Miguel. Dezessete dias de trajetória singrando o Atlântico. Na escrita pode-se colocar toda aquela imensidão sensorial em umas poucas palavras. Quem dera pudesse ser assim na vida real. Poupar os sentidos de tanta cobrança de respostas, o corpo de tanta autoconsciência de seus limites. E havia a tristeza do mar, isso que até então eu só compartilhava da literatura. Uma tristeza sem fundo, que deixava a despreocupação de que se poderia morrer sem que se perdesse alguma coisa. Era como se minha busca pela insignificância houvesse enfim me contaminado até um nível absoluto. Olhava as águas batendo em seu fio contínuo no casco cinco metros abaixo e pensava que tanto fazia se eu desaparecesse. Mais tarde me disseram que era um sintoma típico da viagem. Um senhor esloveno, chapéu de velho madrugadino se inclinando para a testa ao efeito do vento equatorial que dava suas primeiras aparições, barba branca e rosto encavado que pouco estava aí para qualquer coisa, sentado ao meu lado nos cabos de arribação. Não era sua primeira viagem e se espantava de não ter visto até agora alguém se atirando ao mar. Eu me vi tão carente de uma expressão de bondade que aceitei que ele estivesse me precavendo, como se suas palavras estivessem me retendo pelo braço. Aportei em uma capital da América do Sul, e dali uma mistura de inspiração e informações me levou até São Miguel.
                A palavra que eu repetia a torto e a direito era: disappear. Era uma das palavras de meu restrito inglês de reflexões pessoais. Where i can disappear? Essas cidades de ninguém têm sua relojoaria séria, executada em prol da manutenção instintiva da vida, seus descarregamentos de carne de porco salgada e arroz encaroçado, tonéis de óleo de linhaça e fardos de peças aleatórias de ferro acondicionadas para o conserto de fogões e televisores, haveria quem entendesse aquelas palavras proferidas por alguém que não ligava para a constituição rígida e fanática da permanência da espécie. Iriam acabar me entendendo. Achei um dos caminhões que transportavam sacos de mantimentos e fui dispensando os vilarejos que me pareciam mais aprazíveis. Pedia com meu sorriso de coitado e meu olhar destituído de inteligência ao motorista se eu não poderia prosseguir. Proceed. Se as casas tinham algo que me agradava e me lembrava de espairecidas tardes de sol, eu acenava com a alegria dos tolos, tão treinada por mim, e dizia proceed. Se eu notava um ar atarefado ou uma mulher com algum sinal de que pudesse haver alimento suficiente para as conversas malévolas sobre a vida alheia_ se havia notas de possibilidades de que houvesse vida alheia suficiente para tecer maledicências_ eu me aprumava em meu canto da cabine e insistia, como o cãozinho sarnento que abana o rabo para agradar o dono mais um tanto e não ser atirado para fora: proceed. Aí chegamos à última aldeia, que consistia apenas em uma rua de terra com casas grotescas sob um sol inclemente, onde nem quando o motorista deu seu grito de alerta pareceu que não iria surgir alma viva para nos receber. Umas dez casas. Mas logo o caminhão fez sua manobra entre as bifurcações do mato e parou em frente a uma saleta de porta de metal corrida aberta, que compreendi ser o mercado do lugar. Não havia mais para onde proceeding, me disse o motorista. E lá fiquei. Era o lugar mais distante que podia ir para fugir à história.

domingo, 4 de setembro de 2016

The night of



Sim, o Faulkner estava certo: existem sempre os mesmos temas capitais para a arte, que falam sobre a coragem, a dignidade, o sofrimento, a luta contra a opressão, a fragilidade, o erguer-se na derrota, a perseverança, o sacrifício, o amor e a resiliência. Toda a grande literatura e a ficção, não importa de qual época e vertente, falam sempre dessas coisas. É com esse pensamento que eu acabei de ver o oitavo e último capítulo agora de The Nigth of, após tê-lo colocado para gravar faltando sua imprescindível meia hora final e tendo conseguido só hoje baixar o episódio inteiro. É tão genial e soberbo quanto a primeira temporada de True Detectives. Confesso que após o primeiro inesquecível episódio, cheio de silêncios e suspense, pensei que a série iria se implodir em um arremedo das velhas tensões e lugares comuns da televisão, disfarçado com a sofisticação da lentidão de uma ótima fotografia, e questionei o gosto de colocar o personagem de John Turturro (um ator sempre excepcional!) com uma característica repulsiva como a grotesca alergia desfigurativa. Mas a partir do quinto episódio, a obra assume status de obra-prima: é tudo soberbo, atuações, enredo, diálogos. E a última cena da temporada, a última cena, é belíssima e comovente. A grande série americana traz também uma marca registrada: consegue limpar a alma. Estou agora assepsiado pelo contato da grande arte.

sábado, 3 de setembro de 2016

Terapia da música



Seguindo por esse tempo de necessário isolacionismo, estando a Oi em seu prosseguimento natural de espoliar confortavelmente a crendice estúpida e conformada do brasileiro (em todo o estado de Goiás, eu confirmei, está um martírio acessar a internet da Oi), acolhi o conselho do eferim (obrigado, meu chapa!) em ouvir a banda Godspeed You! Black Emperor. Esse álbum aí em cima é uma das melhores e mais gratificantes músicas que ouvi nos últimos tempos, e casa espetacularmente bem com o momento em que vivemos. Mistura de música erudita, com pós-rock, rock progressivo e experimentalismo. Aconselho a não baixarem pelo torrent, porque não vem os encartes dos álbuns, necessários e complementares à obra: baixei em um site que foi criado por alguém apenas para disponibilizar a discografia, creio que é o primeiro link do Google, e nele vem as formidáveis e imprescindíveis capas e encartes. Estou viciado nessa música; fiz caminhada ontem ouvindo este álbum e olhando a massa de nuvens tempestuosas que se criava em cima da represa. O eferim me aconselhou a passar essa música de madrugada no tratamento musical que faço para o sono de meu filho Eric, de dez meses, mas acho inapropriado: tem muitos espaços vazios e muito maravilhoso silêncio musical, o que só pode ser apreciado em um volume mais alto, o que de madrugada fica impraticável. O Eric acordava vinte vezes por noite; a Dani ficou tão exausta, que uma manhã, lá pelas sete horas, eu peguei o Eric e ela desmaiou sentada no sofá, com a cabeça apoiada no encosto, o que resultou em um torcicolo e uma câimbra na perna quando acordou uma hora depois, brava comigo por não tê-la chamado para se deitar na cama (mas, meu amor, eu pensei que você estivesse brincando, eu respondi, absolutamente sem saber na verdade porque a deixei lá, mas muito provavelmente sendo porque o Eric nos deixa a todos desbaratinados). Depois que compramos um sonzinho mediano para colocarmos no quarto, com um pen drive repleto de música clássica e alguma música inclassificável de porte, o Eric se curou. Foi uma dessas descobertas mais estupefacientes da minha vida. Eu queria escrever um tratado sobre essa maravilha e não apenas um post. Na primeira noite, ouvindo Márie Brennan, uma cantora irmã da Enya que está na raiz do namoro entre a Dani e eu (ambos a amamos e só dormíamos, na época do namoro, quando ela dormia em minha casa, ouvindo-a), e logo depois, entre outros sons, os concertos para violino do Mozart (Anne-Sophie Mutter) e as sonatas para flauta de Bach (Aurèle Nicolet), o Eric acordou três vezes. Três vezes apenas! Na segunda noite, com a ração narcotizante dos Concertos de Brandenburgo e a cantata dos camponeses e mais as sonatas para piano de Mozart, o Eric acordou duas vezes. 2!!! Na terceira noite, como num padrão sucessivo, acordou apenas uma vez. A Júlia veio dormir em nosso quarto porque quer participar da musicoterapia, e hoje nós a pegamos dormindo sentada no colchão de casal que eu coloquei ao lado da cama (para que eu pudesse caber nesse esquema todo), no que foi provavelmente uma inútil tentativa dela acordar mas em que foi derrubada pela Maria João Pires. Minha casa se transformou em um templo de música, e isso me enche de uma felicidade sagrada. De madrugada eu acordo e escuto a música que está passando, e o efeito sempre é maravilhoso. O Eric e a Júlia sabem bem o que fazem.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Topografia ( tipos brasileiros comuns)



Um colega de trabalho me mostra, orgulhoso, um vídeo pelo celular em que ele filma seu filho de dez anos com uma jiboia enrolada no braço. Estavam indo para a fazenda, se depararam com a cobra, ele parou e obrigou seu filho a pegá-la. É nítido a cara de terror do menino, enquanto fala "chega, pai", e o pai admoesta: "deixa de moleza home". Mais tarde fico sabendo de um amigo que ele faz esse tipo de disciplina radical porque teme que a voz fina do filho não seja apenas um traço da idade.

Ontem esse colega estava defendendo o Bolsonaro. Eu lhe digo sobre o posicionamento dessa figura quanto à educação dos filhos, que eles devem levar uns bons tabefes para engrossarem a voz, e esse colega me responde: "Mas não é assim que tem que ser? Você não tem um filho homem?" Eu lhe digo que é um tanto estranho ele, um homem negro, defender um racista, e ele me responde, literalmente: "Alguns negros merecem o racismo".

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Hoje minha esposa me relata o episódio que aconteceu na escola militar de nosso sobrinho, o Rui. O ônibus escolar chegou dez minutos mais cedo ao colégio, e os alunos foram barrados na entrada: não podiam entrar tão adiantados. Uma chuva os pega e ficam Rui e seus amigos enfrentando-a diante os portões rigidamente fechados da instituição. A farda encharcada, fora dos padrões da impecabilidade marcial militar, faz com que eles não possam entrar no colégio em definitivo nesse dia. Alguns telefonam para os pais, mas o Rui não tem pai e as únicas pessoas que o podem buscar são a avó, que não pode porque está acamada com labirintite, e a mãe, que não pode sair do trabalho. O Rui, que já foi assaltado e levaram-no o relógio, que é uma criança ressabiada e algo assustadiça, fica rondando pela cidade por cinco horas até dar o horário de entrar no ônibus de volta. Sua mãe paga 150 reais de mensalidade para isso que é tido como colégio público e gratuito, gasta 750 reais por ano com a farda, e mais 500 reais por mês do transporte vendido pelos próprios administradores do colégio. Eu sempre falo para a Dani que não consigo imaginar o Rui nesse tipo de instituição, e ela me diz que sua irmã prefere isso à escola pública convencional, com o tráfico de drogas, o bullying, a violência e a ingerência e a péssima qualidade do ensino.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

O quadro em branco na parede

Anselm Kiefer, Heroic Symbols, 1969


Chego ao escritório hoje e tenho que ouvir os mesmos clichês, as mesmas ladainhas, as mesmas ideias fixas e o mesmo ódio que pretende ser debochado. Me resta concordar com tudo, rir e levar na esportiva; não dói nada ser falso, tamanha a minha consciência de que contestar esse muro é não só inútil quanto demasiadamente desgastante. Eu não estou certo, não me ponho nessa situação em momento algum, apenas optei por descartar o máximo de relativismo que me seja possível. Já expliquei isso antes para alguns colegas, mas ou parece que eu é que estou num estágio de fundamentalismo, ou eles é que são incapazes de enxergar algo que não seja o desesperado utopismo. Querem um futuro que não cabe em nossa medida como povo, uma redenção vinda de não se sabe de onde. A vingança que estão tendo nestes dois últimos dias não lhes parece mais doce; eles esperavam uma catarse completa, uma expiação que proporcionasse a simplicidade inquestionável da dicotomia bem/mal, e não tiveram. Estão em um desbaratino tão delicado que não podem se por como logrados, porque isso destruiria de uma vez as suas já frágeis certezas. Me recordo então do Herzog, um dos personagens do grande Saul Bellow que moram comigo eternamente, ele andando por Chicago se questionando se realmente lera os livros certos e se ao lê-los não fora um tanto preguiçoso, se a verdade lhe escapara. Cogito se eu não estou errado; diante essa malta de pessoas que se regala com o conforto da certeza comunitária, se eu não deveria fazer o mesmo, a história não se avultará para provar que a voz de deus é a voz do povo e eu não passo de um esnobe tolo. Afirmar isso seria jogar no lixo todos os livros de história e toda a impactante literatura política que me passou pelas mãos, eu os entendendo ou não. Capitular seria mentir para toda a minha vida em que me preparei, mesmo não tendo a consciência disso na maior parte do tempo, para a ocasião inevitável em que eu estaria absolutamente sozinho. A busca do esclarecimento não passa disso: se preparar para o momento inevitável em que a solidão o segregará do poderoso senso comum; tornar-se mestre do silêncio. Muitos indícios de que o momento está chegando, e agora eu tenho filhos, uma esposa, agora tanta gente que eu amo que falar não me parece uma boa coisa. Lembro do jovem Elias Canetti na Kristallnacht, quando o terror de estar no meio de uma massa enfurecida ditou todo seu tema de como evadir-se do pecado do coletivismo_ escreveu Massa e poder, uma bíblia e uma vacina não devidamente lida. Lembro do conto A bandeira inglesa, em que um Kertész demasiadamente lúcido descreve a euforia de meros segundos que foi a sarcástica revolução de um carro metralhado com a bandeira inglesa da libertação abortada. Aqui eles estão falando de Bolsonaro, de militarismo; um colega negro chega a falar que certa expressão do racismo é mesmo legítima. E me sobra o orgulho de conhecer uma nova força em mim, a da dissipação, a da não importância, pois espero dar a hora propícia para ligar para minha esposa para perguntar se o plano que fizemos ontem para facilitar o sono de nosso filho de 10 meses, Eric, funcionou: o de colocar um aparelho de som no quarto tocando as músicas que o fazem desmaiar durante a noite: uma partida noturna efetiva às custas de Bach e Mozart, de Mogwai e Explosions in the sky. Não sei até que ponto esse meu desinteresse corrobora com alguma coisa, se isso também não é seguir as massas. Talvez eu esteja me achando ingenuamente astucioso demais.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Facebookcionismos



Eu poderia dizer que, "a meu favor", eu percebi a grande besteira que estava para se produzir e tomei partido, mas não consigo me vangloriar disso, visto que todos estamos no mesmo Titanic. Eu era ardorosamente crítico ao PT, etc, vide no blog do Milton as discussões em que participei; de modos que todos assustaram com a minha súbita "virada da casaca". Meus amigos acham até hoje que enlouqueci, ou que me tornei alienado. Não é isso: foi algo puramente egocêntrico. Foi tipo aquela história do sujeito que reclama da casa em que está preso e quando tem a oportunidade de abrir uma porta, descobre o abismo. Melhor ficar com o que já tem e ter a maturidade de se aperceber em um grupo_ uma nação_ e batalhar pelas mudanças. E, Nelson, você deve saber o quanto te admiro, etc etc, mas desde meus 5 anos eu escuto esse humor "judaico brasileiro" (eu o chamo assim porque todo humor personalíssimo de um povo, o humor repetitivo compulsivo cujo único tema é a sina desse povo, tem algo de judaico), Jô Soares com a gaiola do pássaro "corrupto", o Chico Anysio, as tirinhas do Piratas do Tietê, e tantas e tantas outras: são quase 40 anos ouvindo a mesma coisa, meu chapa! De modos que eu me vi perguntando: peraí, o humor exige uma catarse que o destrua? Durante quantos séculos vai se rir desconsoladoramente da mesma coisa, da mesmíssima coisa por aqui? Tem um limite em que o otário ficar rindo de si mesmo, de sempre ser um otário, cansa, desespera, dá vontade de morder a testa, espuma a boca. Daí eu ter nojo, repulsa, asco, do nosso judaismo auto-penitente hoje, de nosso passo marcial seguindo alegremente para o holocausto (e aqui a figura que tenho em mente é a da natureza do carneiro em oferecer o pescoço para a faca, uma abnegação chocante e nojenta, e não a Shoá), desse humor sempre inteligente mas que, para mim, não tem mais graça. Eu tive que optar pelo posicionamento. Andei escrevendo alguns textos defendendo o Lula, e fui muito xingado, quiseram me matar. Vi que o relativismo estava fodendo nós todos, nos transformando em assassinos cibernéticos carregados de ódio, de prepotência. Admiro sim o Fernando Horta aí de cima, já compartilhei textos dele, assim como compartilhei textos seus. Talvez eu também o defenestraria porque ser alvo não é mesmo a minha praia, mas o conheci aqui e o cara tem ótimas ideias e uma visão radical cujo radicalismo me espanta por ser radical e não a atitude de procurar a mudança que deveria ser a atitude cotidiana de todos. Mas o Brasil, creio eu, vai voltar a ser o que era (se alguém tiver interesse, meu texto sobre isso se chama "Moral em pareidolia", só digitar isso acompanhado de "Charlles Campos", e pimba, o Google mostra), e a esquerda acabou. Aqui eu repito a frase do Zizék: "com essa esquerda, quem precisa da direita?". Sim, grande parte dessa ruína, principalmente a ruína moral, vem da dita esquerda nacional. Mas quando penso nisso eu me policio e estaco, porque sinto o judaísmo querendo fazer os mesmos discursos clichês, pois penso que agora o brasileiro vai se aposentar aos 70, as desproteinação das leis trabalhistas pretende demiti-lo aos 67 para que não lhe paguem a aposentadoria, seu poder aquisitivo vai desmoronar consideravelmente , e o estado vai ser vilipendiado, e já estão proliferando os Gilmar Mendes, e etc, e etc. E nem o humor mais nós temos, porque perdeu miseravelmente a capacidade de produzir riso.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Um texto ruim


                                                                 (phew for a minute there i lost myself ilost myself

Estou num processo de depressão progressiva e minha ação de abrir uma conta no Facebook só fez com que ela ficasse mais grave. Nota-se que minha capacidade de síntese também ficou muito afetada com essa ação, pelo que de imediato se vê na frase acima. Eu abri minha página no F e todo aquele ritual de montagem da minha existência entre os adeptos foi acontecendo, fato que eu contribuí fazendo apenas o que me cabia fazer, que era ficar absolutamente inerte e deixar que o organismo do F fizesse tudo por mim, me incorporasse. Coloquei as fotos que eram para ser colocadas, para que a coisa ficasse minimamente apresentável, algo que executei sem qualquer traço de empolgação, e fui respondendo até onde minha paciência aceitava as perguntas automáticas de praxe. Pronto, eu já tinha um F. Olhei a superficialidade da página, sua grotesca intranscendência, sua gritante breguice, sua fundamental ausência de interesse humano... um desinteresse tão explícito que até quando a máquina me joga suas opções de gelados contatos com outros usuários, ela me informa que fulano "comentou sua foto", pois é aceito irrevogavelmente pelo aparelho que ninguém tem conteúdo suficiente para mostrar a não ser o clichê vazio de uma foto pessoal ortodoxa, sorrisos, poses descoladas, a felicidade em falsete. Pronto, minha impressão amargurada de que ninguém está aí para a porra do outro ficara mais forte. Um bando de coitados tentando ser interessante, inteligente, intrigante, genuíno, charmoso e engraçado. É isso, meu Deus? O quanto eu estou defasado e continuarei assim até a morte, o quanto sou negativo e inadaptável. Acesso meu F, e a jornada se inicia. Antes, a construção de meu quadro de amigos, e, como não deveria deixar de ser, a necessidade de rebater aquele tanto de pornografia e más intenções que se oferecem aleatoriamente para serem meus amigos. Então a coisa está feita. Sento-me à mesa, abro meu notebook, e acesso a minha página do F. É um filme de terror. Um pavor fundo. Não dá para ler nada, para ter a empatia e o recolhimento de angariar algum valor com os tantos posts, os tantos links para matérias da hora, para textos de vários jornais do mundo, para cada oferecimento produzido pelas vaidades retumbantes dos meus amigos do que eles julgam fundamental. Não leio nada; só fico muito tempo puxando o cursor para baixo para dar uma panorâmica em tudo, embora tudo seja uma impossibilidade inalcançável. Não consigo ler mais que 4 linhas de um post. Se um post tem 5 linhas, não leio. Mas, pela boa educação_ uma cordialidade estúpida e sem sentido, visto a extrema velocidade e extrema ausência de concentração da coisa_, eu vou apertando a tecla curtir. No segundo dia, já estou em um debate com vários usuários, falando sobre livros, uma montanha de livros. Parecem-me apaixonados pela leitura, ardorosos pretendentes a intelectuais: mas onde acharão tempo para a devoção aos livros, se, pelo que se me afigura, não saem do F? Entro numa roubada de instalar o aplicativo de conversa em meu celular, e daí mesmo quando estou caminhando meus 10 quilômetros diários a parafernália não para de apitar, avisando das mensagens recebidas. Estou dirigindo, e o celular apita. De madrugada, apita. Onde essas boas pessoas acharão lugar em suas compulsões para a leitura? Alguns almejam a carreira literária, sonham com rebeldias explosivas. Há uma garota que até me espanta com a alta qualidade de seus poemas. Mas cadê o recolhimento? A depressão aumenta. Hoje eu passei cabisbaixo, envelhecido, sem energia. Li as páginas que eu escrevo em meu livro, e de repente parecem estúpidas; a estupidez é tão visível nelas que eu esmoreço, vou tomar um suco, ligo a televisão num noticiário. Me espanta meu conformismo. Tudo bem, se eu não consigo, tudo bem, deixo de lado. A negação da chama, por mais que ela seja pequena. Escrever, ora bolas, para quê? Para quem? Aquela velhas perguntas, só que bem mais fodas, bem mais realistas e acachapantes. Há tantos gênios pelo F.; tantas palavras da ordem, tanta ideia fresca e motivacional. Onde eu caibo nessa? Algumas vezes, quando eu consigo ler um texto inteiro de um desses grandes formadores de opinião de 20 mil curtidas e um milhão de amigos, eu penso: para que o mundo precisará mais do que isso? Esse cara, ou essa mulher, com suas estantes de livros ao fundo, com seus posts anteriores falando o que comeram no jantar, esses bem humorados divinatórios, limpos e perfeitos, asseclas da boa aventurança de um novo lugar comum da saúde midiática, já são o auge do esclarecimento, o que se pode exigir mais do que isso? Eles escrevem com agilidade, graça, ferocidade, tudo muito bem medido, sem pompas, como se eu batesse na porta de seus apartamentos vizinhos ao meu e eles me dessem essa incomensurável demonstração de calor biológico me explicando tudo o que eu não sei, tão acessíveis; e fazem vídeos caseiros complementado o ensinamento, em que um lance de sobrancelhas já tem o poder de ficar nas mentes por meses, abrindo espaços de significância. Literatura para quê? Diante deles, escritores como Dostoiévski, por exemplo, é um completo doente. Imagino o quanto Dostoièvski seria execrado se tivesse um F. Doente, imoral, infeliz, perverso, avesso, desconstrutivista, CHATO. Na verdade, Dostoiévski passaria batido, ninguém se importaria com ele. Mas Dostoiévski é um ponto limite, talvez não sirva como exemplo. O que quero dizer é que isso, esse simpaticismo radiante, me deixa numa tristeza só. Fico pensando se, assim como vemos hoje pela série Madmen o quanto o cigarro era incorporado na vida cotidiana de 50 anos atrás, o F futuramente seria visto como um vício extremamente perigoso que a sociedade não percebia. Porque é de uma aberração sem igual ficar todo o dia e noite acessando o F para ver essa caravana de futilidades, essa procissão de vaidades vazias e recalques desbaratados pela fantasia do conteúdo, essa inadvertida construção de uma nova razão para se ter remorso na velhice pela ostentação de não ter feito. Esse fogo fátuo das ideias. O que me assombra mais é o quanto o F prescinde de toda estética, em sua forma quadrangular, sua descansada admissão de que seus usuários são efêmeros, lembra folhetos de propaganda de supermercados e lojas de eletrodomésticos, aliás, não só lembra, mas é um folder de propaganda contínua; é como cultivar a acachapante ilusão de imprimir o espírito entre as cores aberrantes que anunciam as televisões das Casas Bahia, escrever nos interstícios do vermelho e da foto do homem gozado gritando "esse preço só até sexta-feira" a confissão pura e recolhida no fundo da alma. É uma dificuldade procurar as postagens anteriores do usuário, porque o F não foi criado para ser uma reserva progressiva de conteúdos além daquele do dia. Mas não tenho a esperança e o otimismo de acreditar que vá acontecer algum dia essa lucidez libertária de se perceber o quanto o cidadão atual virou uma besta acéfala, regido por fantasias estúpidas de pertencimento a uma comunidade global, ensandecido pelo puxa-saquismo mútuo de que é um gênio e um grande ser humano; mas não acho que vai ficar pior; o F vai acabar, sendo naturalmente substituído por outras roupagens, e o ser humano vai estacionar em sua afasia, o que tal realidade, pode-se dizer, já está acontecendo agora: o ser humano vai se limitar a ser apenas essa vontade não pragmatizada, esse ectoplasma insuflado pela promessa de que pode ser tudo através de uma masturbação cibernética, sem nunca ser nada. Não se pode dizer que se será cada vez mais inumano, porque a lógica é a inércia harmonizar tudo em um mesmo patamar de ausência de valor. Não seria tão terrível se se pudesse transferir tudo para o universo inaugurado pelo F, se tudo fosse da mesma maneira plástica e de sensibilizações amorfas e instantâneas; mas acontece que o mundo do lado de fora, o que antes era tido por mundo real, vai continuar a existir. Inteligências tornadas peculiares pelo corte da amplitude, ternuras excisadas e altruísmo atrofiado até o desaparecimento, vão propiciar um estado de dominação política e social e econômica que, pelo que tudo indica, alcançará níveis de brutalidade inéditos, em uma miríade de formas. E não haverá nada que poderia reverter essa situação, uma vez os seres humanos terem se tornado o homem apascentado e frouxo predito pelo Nietzsche. Isso são pensamentos de um depressivo, que vê a distopia como a realidade corrente, e que escreveu esse texto ruim. Sempre foi um erro e uma ingenuidade imensa acreditar que a dominação viria após revoluções sanguinárias, baderna e anarquismo, que se proibiria ler livros queimando-os todos para que a população não tivesse esclarecimento, que se arrebanharia pessoas em laboratórios e se as produziria em série; a dominação não veio com a censura, mas com a liberdade total; oferecendo-se livros e música de graça para pessoas distraídas a um nível tão extremo que já não conseguem ler livros e ouvir música. Distraídos da distração pela distração, como disse Eliot. E como ele também disse, o fim do mundo não vem com uma explosão, mas com um murmúrio.

domingo, 7 de agosto de 2016

Ninho



Minha alma eterna (me permitam que o diga assim), minha alma eterna está me deixando aos poucos e quase estou sentindo sua resignação decepcionada: mais uma casa onde não consegui fazer meu ninho... (Imre Kertész, Eu, um outro)

Gráfico



Eu sempre achei fascinante esse deslumbramento provocado pelo futebol (e outros esportes) no Brasil; basta uns fogos de artifício e umas coreografias para que se instale a impressão de que tudo está bem, de que nosso amor pátrio é intacto e justificadamente alimentado. Essa capacidade que o futebol tem por aqui de despertar o ufanismo acrítico mais retumbante faz ver que esse tipo de dominação está instalada no gene nacional. Na Copa foi a mesma coisa: críticas no começo, daí  vem o time nacional e ganha de algumas seleções pés-de-chinelo, e todo mundo fala que é "a Copa das Copas", esquece-se das mortes recordes com o despencamento de viadutos e trabalhadores da construção nos projetos faraônicos superfaturados, esquece-se da segregação dos pobres arrastados pelas patrolas dos estádios, esquece-se da sempre reinante divindade da emissora de televisão que coloca seus apresentadores de sempre e suas anittas da hora para representar os eventos, na mais abissal encarnação do panis et circenses, de tal forma que a anitta da hora é tida com a unanimidade mais estúpida como uma "grande intérprete da tradição do samba"; aí vem o 7 a 1 e acaba com tudo, esquece-se de se continuar esquecendo o que já se esqueceu e não sobra mais nada senão o mesmo vexame de reconhecermos o quanto esse tipo de coalizão nacional é falho e desproteinizado, volta a ânsia das diferenças e o grande ódio recíproco que infesta a internet, e ficamos com os rabinhos entre as pernas, envergonhados, prometendo a nós mesmos não cairmos mais tão facilmente nesse tipo de engodo, de sermos mais maduros, e aí vem a Olimpíada e se repete os mesmos sintomas, a mesma ciclicidade resumida na fórmula da veneração descerebrada. O brasileiro pode ser colocado em gráficos de mensuração de comportamento altamente precisos e calibrados. Seja quais forem os próximos eventos futebolísticos globais que o Brasil tiver, a situação se repetirá eternamente.

domingo, 31 de julho de 2016

O tradutor cleptomaníaco



O conto O presidente,  de Dezsö Kosztolányi, contido em O tradutor cleptomaníaco, da Editora 34, é um dos cinco melhores que já li. Está no mesmo patamar que Bartleby e O alienista _ trata do mesmo tema destes, a alienação voluntária à grotesca realidade terrena, a "fuga da história". No conto do húngaro, o alto humor pontua a visão fortemente niilista quanto às instituições culturais e científicas; dei gargalhadas ao mesmo tempo em que tive a certeza de que estava lendo uma das críticas mais ácidas contra a estupidez humana. Aqui reproduzo uma das partes mais hilariantes do conto, em que o personagem Kornél Esti descreve a singularidade dos alemães:


"Um mundo novo se abriu diante de mim. Assim que meu trem rolou em trilhos alemães, passava de uma surpresa para a outra. Pode-se dizer que estava sempre de boca aberta, a partir do que meus companheiros de viagem deduziram que eu era um débil mental. Ordem e limpeza em todo canto, nos objetos e até nas pessoas.
        Desci a primeira vez num pequeno balneário, para lavar a poeira. Não precisei perguntar para ninguém onde era o mar. Nas limpas e varridas ruazinhas, precisamente a cada dez metros, havia um elegante poste, nele uma placa branca esmaltada, com uma mão que aponta, embaixo a inscrição: Caminho para o mar. Seria impossível guiar melhor um turista. Cheguei ao mar. Lá, fiquei um pouco pasmado. Na areia, a um metro da água, um poste um pouco mais alto, mas totalmente parecido com os anteriores despertou minha atenção, e nele, uma placa branca esmaltada, um pouco maior, mas totalmente parecida com as outras, com esta inscrição: O mar.
          Para mim, proveniente de um lugar latino, parecia-me a princípio totalmente desnecessário. Pois uma agitada imensidão espumava diante de mim, e era óbvio que ninguém poderia confundir o Mar do Norte com uma escarradeira, ou com uma lavanderia. Mais tarde reconheci que me enganara na minha superficialidade juvenil. Era justamente nisso que estava a verdadeira grandeza dos alemães. Isso era a própria perfeição. A inclinação dos alemães para a filosofia exigia que concluíssem a tese e apontassem o resultado, como muitas vezes um matemático escreve numa demonstração que 1 = 1, ou na argumentação lógica, em que muitas vezes se constata que Pedro = Pedro (e não a Paulo).”

O caderno de capa vermelha



Entrementes, não começou assim. Desde que me internaram e os sintomas do meu mal foram diminuídos até que tudo fosse expressivo demais ou visível demais a um nível pouco elegante, o doutor Toledo arranjou de elogiar meu ego me pondo a escrever. Digo elogiou-me porque por detrás de sua boa estampa de cavalheiro para o qual o mundo se curva em amenidades solenes, há a astúcia fria e um tanto perversa do homem da ciência. Trouxe-me da primeira vez um desses cadernos vulgares, cujo vermelho berrante da capa provocava a angústia de se lembrar que além dos muros da clínica a bestialidade continuava a bruxulear à toda força lá do lado de fora. Justo quando concluía-se o segundo mês de meu confinamento onde se firmara que é voluntário, que a qualquer hora que me faça desejável eu posso muito bem deixar a clínica e voltar para casa, e eu estava me acostumando com as vantagens recolhidas da falta de liberdade, aparece-me de frente esse vermelho de verniz explosivo, esse eloquente corte de verbas de um produto feito para a alienação dos estúpidos cumpridores de regras. Não foi por menos que o doutor Toledo percebeu no ato a minha profunda decepção quanto à sua falta de sutileza. Pelo canto dos olhos, em nossos estudos mútuos de nossas humanidades recíprocas_ pois o centro dos olhos prostrava-se naquele objeto pueril que era o caderno de vermelho berrante_, foi-me possível apreender sua impavidez marcial titubeando diante a consciência de seu lastimável passo em falso. Ele já não podia voltar atrás e admitir que havia quebrado alguns dos preceitos de nosso pacto de confiança, de forma que recorreu a toda força de sua ortodoxia profissional para se fazer de correto. Disse-me para escrever sobre minha vida, o que me passasse pela cabeça; que eu caçasse a fundo a raiz do que desencadeara esse estágio no tempo em que singularidades de comportamento e de íntimas contenções define o Halperin Sás que agora desvanece seus dias nessa clínica, se contrai em aquiescente deleite à condição de vigiado para quem eufemizam sua realidade de prisioneiro. Com sua voz acalentadora, uma voz que é uma dimensão em si mesma onde meus ouvidos sentem os vastos campos de papoula florescendo, o doutor Toledo me instiga a depositar naquelas folhas o que eu sou. Depois vai embora porta afora e me deixa com essa excrescência rubra no colo; propósito: tornar meu espólio espiritual tão empobrecido quanto esse caderno. Por pura raiva, na verdade uma raiva também progressivamente aquiescente, começo a escrever. O lápis que ele pôs em minha mão, como não haveria de deixar de ser nesse sistema de confluências lógicas, é da mesma vulgaridade de trinta centavos, encontrados nos balcões dos armazéns de esquina como troco complementar às moedas faltantes no começo do expediente; pelo menos é negro; analisando-o com certa resignação, neste a indústria dos rebanhos pacificados não achou a matemática de retorno de lucros que autorizasse um azul diatomáceo ou um vermelho acrílico encegante. Um negro comportado, de alguma forma digno se meu cérebro não trabalhasse para desfilar as tantas imagens em que homens de ternos baratos tem exemplares dele em mãos para fazer toscas contas de despesas de final de mês. É tudo de uma vulgaridade tão brutal que sinto na garganta um grito subindo, que eu engulo com a força de todos os músculos do pescoço, e me admoesto: "Sua nova regra, Halp: aceitar as coisas como são: inserir-se no tempo, não mais o recusar. Foi-se a época do Pequeno Nero. Agora te pegaram. Envenenaram-te com estudada parcimônia para que todos os excessos fossem desbastados." Sinto minhas mãos em uma situação de plenitude afásica, estendidas nas minhas coxas como se não fossem mais minhas. Pequenas mãos enodoadas pelo derrame de melanina, dedos infantis tortos, juntas grossas deformadas, a dupla materialidade do anúncio da velhice, uma moldura engordurada em torno. Mãos do tipo físico clínico que indicam a ausência da ganância. Mãos cujo único desejo foi nunca possuírem. Lembro então que as mãos de meus tios eram enormes, como aranhas subaquáticas surgidas na rede pesqueira com uma surpresa terrorífica, vindas lá do fundo, loucas para adivinharem a luz e embriagadas o suficiente para substituírem o êxtase para as quais sabem incapazes pela compulsão da posse. Mãos abissais, fartas da escuridão mas intimamente definidas por ela. Sempre que uma dessas tomavam as minhas em seus centros ásperos e quentes, o poder de sua imensidão me apequenava ainda mais. "Que mãozinhas delicadas tem o Halp", diziam, com aqueles animais hipertrofiados regurgitando com um carinho seco os ossinhos das minhas mãos, devolvendo-mas depois com gentileza. Sentia a estrutura rígida de seus músculos, suas inteligências maquinais carregadas de vaidade por saberem as preciosidades anatômicas que eram. Pensando nisso tudo, me levando por essa desalentadora corrente de sugestões, baixo meus olhos e esfrego uma nas outras as minhas mãos indispostas a novos começos. Mesmo assim, minha mão direita pega o lápis e começa a escrever na primeira página do caderno vermelho.

sábado, 30 de julho de 2016

A chegada, de Shaun Tan

Uma das mais belas graphic novels do mundo não contém uma palavra. Ontem, eu e a Júlia aproveitamos o início do último final de semana das férias para "lê-la" até a madrugada. "A chegada", de Shaun Tan, uma obra-prima simplesmente genial. Um livro cinema-mudo.










terça-feira, 26 de julho de 2016

As pequenas virtudes, de Natalia Ginzburg



Na faculdade eu tinha uma amiga que era fã de Hemingway. Ela era miúda, de óculos, ruivinha, e fazia medicina_ e era apaixonada por Hemingway. Era tão exótica em seu ambiente quanto eu com meu livro do William Golding nos pátios da Veterinária. O que mais me espantava não era o fato dela estar se integrando nos quadros da profissão que menos lê além dos compêndios técnicos, mas pelo fato dela, tão feminina, gostar de um autor que volta e meia utilizava a apologia de seus "colhões" como eixo condutor da frase. Eu perguntava para ela, realmente querendo saber, como uma mulher suportava ler Hemingway. Na minha incapacidade de correlação, imaginava que seria o mesmo que um homem ler Barbara Cartland. Ela me respondia que adorava aquele masculinismo, mas compreendia talvez de uma maneira que me faltava os meios a fragilidade do autor. Ela, por exemplo, detestara Adeus às armas, achava-o esquemático, cheio de clichês, com um final tão falho quanto um desfecho de uma novela televisiva mexicana, enquanto eu ainda estava sob o fascínio da extrema concisão daquela última página que, repeti para ela, segundo consta, Hemigway a reescrevera 30 vezes. Por outro lado, ela e eu dividíamos a reverência pelos contos de H., em especial Gato na chuva e Montes como elefantes brancos, e julgávamos também de comum acordo que Do outro lado do rio, por entre as árvores era seu melhor romance. Guardei desses anos meu preconceito ingênuo de achar que boa parte da literatura era insultuosa para mulheres, já que era escrita por homens e para homens.

Hoje estava acabando de ler o livro As pequenas virtudes, da Natalia Ginzburg, publicado pela Cosac Naify. Vou admitir: já li várias escritoras, mas só agora, com esse belíssimo livro em mãos, entendi. Talvez só me veio a compreensão porque, de forma geral, Ginzburg seja a mais feminina das escritoras. Ela, felizmente, não tem a ostensividade de gênero que às vezes extrapola o vulgar em Hemingway. Ginzburg é... como direi...absolutamente sem medo, absolutamente verdadeira. Não há nenhum artifício nela, para o bem ou para o mal. Ela é feminina de um jeito primordial, nela está a resignação e algo que transcende a resignação da mulher diante a sina de sofrer pela imaturidade e instabilidade do macho. Nunca vi uma escritora tão só, e tão preenchida da missão em analisar puramente a solidão da mulher no século passado, nas guerras, na deportação, no exílio. E o mais belo nela é sua desproteção, sua maneira de ser gigantesca sendo pequena. E o que torna isso maior ainda é que, ao contrário da literatura masculina, ela não precisa da astúcia para ter legitimidade, não precisa do ódio, do rancor, que são tão características da literatura produzida pelo gênero masculino. Todos os contos desse livro, grande parte bem ligeiros, são obras primas, calam fundo, são brisas frescas em um quarto acolhedoramente escuro. Não tem como sair desse livro sem cultivar um amor pela Ginzburg, sem procurar sua foto e ver seu rosto expressivo, não trivial, de ângulos tão propícios ao sofrimento e à reflexão, seu rosto espichado, pouco bonito, ou feito para ter todo o esplendor de sua beleza recolhida na velhice. Seu rosto não tem a propensão à neurastenia da Virginia Woolf, é bem mais forte; vê-se isso em sua falta de pudores para sorrir e se comportar com sua saudável normalidade nas fotos, ao contrário de Woolf, cuja incapacidade de sair da ética burguesa feminina de posar como um fauno deve tê-la irritado bastante. O conto Ele e eu, presente nesse volume, mostra seus sentimentos resignados diante a imposição patriarcal do marido, diante seus sarcasmos e sua tirania em rebaixá-la. Ginzburg usa de toda sua fragilidade assumida para construir uma das reivindicações mais tocantes para a liberdade de ser simples sem ser simplória; ela acaba saindo com uma estatura bem mais íntegra no final do conto do que seu marido, sem que, repito, tenha usado de nenhum artifício melífluo para tal. É um conto que em meus anos de ingenuidade eu acharia se tratar de uma literatura inócua ao homem, só assimilável a uma outra mulher, como um segredo, uma identificação, um sinal de pertencimento. Hoje percebo o mesmo que minha amiga, bem mais inteligente do que eu, em fazer da leitura um aprendizado sistemático, imune a clubismos. Uma felicidade sem tamanho ter encontrado esse livro.