quarta-feira, 29 de junho de 2016

Anamnese



                                                                             
                                                                         I

Ele leu no excepcional romance VALIS, assinado por Philip K. Dick, que o universo é irracional, moldado pela selvageria violenta, mas que a partir de determinado ponto na história, uma côncava deterioração na ordem deu espaço a uma gota de racionalidade. Ocorreu uma invasão da racionalidade no universo. Ele leu essas palavras com êxtase, como costuma fazer sempre que se depara com as tantas intrusões de percepção ao absoluto que vê na arte, na ciência, nas conversas cotidianas, na religião informal, ou mesmo_ ou, principalmente_, naquilo que é conveniente chamar de loucura. Philip K. Dick, ao que parece e é imediatamente entendível, estava louco quando escreveu VALIS, ou se curava paulatinamente dos sintomas mais graves de sua loucura. Para todos os efeitos, o romance é uma auto-biografia dos anos em que Dick esteve declaradamente louco, deportado da realidade a um nível paranoico em que sua mente inusitadamente criativa confeccionou uma cosmogonia própria. Ele sempre foi fascinado pela loucura. Não nesse lance de querer ser psiquiatra, mas sempre foi fascinado pela loucura não sistematizada pela ortodoxia acadêmica, os loucos que são mais eremitas refugiados em seus mundos privados internos, não os loucos que são explicados no resumo deploravelmente pobre da escatologia do recalque de seus orifícios biológicos. Sheridan Le Fanu, Robert Walser, William Blake, Daniel Schreber, Arthur Bispo do Rosário, Swedenborg. Ele colocaria nesta lista de grandes notáveis, ainda, Kafka e Beethoven, que, na sua concepção, só não foram declarados loucos porque o poder visionário do primeiro só foi deflagrado postumamente em um mundo com seus eufemismos racionais já devastados, e o segundo porque a música salvaguarda para o bem ou para o mal seus criadores em uma categoria em que a loucura não aparece com tantos deméritos sociais. Nunca ouvira falar sobre a loucura de Mussorgski, por exemplo, naquele quarto invernal em que escreveu seus mais terríveis pesadelos, enquanto Le Fanu é tido como um pobre pinel indefeso escutando atrás de si na vida real os passos das entidades invisíveis sobre as quais escreveu seus contos.

Por isso na noite de natal, quando todos estavam dormindo, ele se trancou na biblioteca, já um pouco alto pelo espumante espanhol que sua irmã trouxera, e uma garrafa de seu fiel Gato Negro, e pôs-se a ler VALIS. Ouvia a casa reverberando no silêncio da madrugada, imaginou a respiração de sua mãe, de sua filha, de sua esposa, e da irmã, naquele estereofônico cósmico sofisticado que é a noite em uma casa fechada, e seguia na leitura do livro. Acontecera uma coisa, como sempre. Muitas coisas. Se estava lendo aquele livro, que sequer pensara em Philip K. Dick há anos e não nutria nenhum interesse especial por esse autor, era porque a imprescindibilidade inesperada de suas leituras não programadas agia mais uma vez. Em um mundo onde o esoterismo desaparece nas frestas do cotidiano, a olhos vistos, ter essa impressão de uma mensagem direcionada de algum lugar para compor sua lista de leituras, era um agarrar terno à sua dose de incorreção à lógica. O que acontecera, pela ordem do mais brutal ao mais terno, era: primeiro, seu vizinho de frente, o advogado milionário dono de dez lotéricas e que desde 4 anos mantêm diariamente o contrato de um grupo de pedreiros na construção de um bunker faraônico, sofreu um grave acidente de carro, na noite do domingo antes do natal. Ele fora buscar no aeroporto da capital sua filha de 17 anos, que cursa medicina em Minas Gerais, e a 50 quilômetros antes de chegar na cidade, deparou-se com dois cavalos soltos na estrada. Estavam no carro mais a outra filha de 7 anos, e uma amiga da família, que junto a ele sofreram escoriações leves. Todo o impacto da batida caiu sobre a sua filha mais velha. Ele ficara sem saber sobre a gravidade da tragédia; sabiam que a casa, o bunker, com seus altos muros indevassáveis, está deserta e sem sinal de qualquer movimento, as luzes de neon do escritório de advocacia de frente apagadas. Sabiam que pelo facebook solicitaram doações de sangue. Só quando foram à livraria da lotérica, que sua esposa perguntou à funcionária notícias sobre a menina. Sua esposa lhe contou e ambos ficaram um longo momento em silêncio. A funcionária disse que a menina passara por duas cirurgias no rosto, iria passar por mais outra no maxilar; quebrara todos os dentes; não fora retirada da sedação; que os médicos disseram que não sabiam se ela iria andar novamente. Ele ficou quieto diante o volante, ao ouvir a esposa contar. Ficou analisando o quanto deveria se sentir mal com isso, o quanto deveria se sentir chocado. Em vez de grande indignação e reconhecimento humano, ele sentiu um vazio sensorial. Vasculhou com toda sinceridade que devia para com a menina, para ver se detectava em si algum indício de alívio, ainda bem que não foi comigo. Lembrou do personagem em Ruído branco que diz ao outro com um enorme câncer de fígado: não vou mentir para você que eu penso que melhor isso ter acontecido com você do que comigo; é perfeitamente humano pensar assim, por isso você não deve me recriminar. Mas não viu esse alívio em nenhum lugar dentro de si, ainda que tais coisas, dentre as armadilhas ilesas à auto-avaliação, sejam as mais impenetráveis.

Ele caiu em uma ciclo de negatividade. Não era supersticioso, mas às vezes se surpreendia de como as coisas passavam a não funcionar ou a quebrar em suas mãos, quando se tornava negativo. O máximo de controle que obtivera nesses anos de combate contra tais períodos foi o de não falar mais sobre eles. Antes saía por aí reclamando que não entendia, deus isso, deus aquilo. Agora, fica em silêncio, segue vivendo com absoluta normalidade, com o humor surpreendentemente mais apurado, mas sente que se um pássaro predispusesse a fazer o clichê clássico de pousar em sua mão, o bichinho iria encolher e sair assustado, trôpego pelo ar, até cair morto em alguma moita, ou quem sabe se a negatividade não teria nenhum pudor mais de se mostrar a todos ao fazer com que a avezinha se estrebuchasse no chão logo em seguida, no centro da praça e para o horror das crianças. O controle da tv a cabo não funciona em suas mãos, mas nas mãos dos outros da casa sim. A azaleia que sua esposa comprou murcha sem motivos, senão os que ele sabe sobre sua radioatividade. Seu notebook deu pau. Levou o note para o conserto, o rapaz ficou três dias com ele, usou um secador feminino (como chama aquele aparelho que as mulheres usam no cabelo?, o rapaz, no intuito de ressaltar seus esforços) para ver se a placa mãe não soldava, mas não teve jeito. A placa fundiu, o rapaz disse. Ele o olhou não tão de todo assustado, porque sabia que o único culpado era ele próprio por não ter sido previdente, e pensou nos tantos esboços e trabalhos literários nos quais trabalhava, gravados naquele computador torrado. Havia feito cópias em hds externos, não de tudo. Talvez a parte perdida não fosse tão importante. O rapaz lhe propôs pagar 150 reais pela carcaça do aparelho, ele respondeu que ia ver, conforme fosse, voltaria. Entrou numa loja e, ao fim de um dia de pesquisa, comprou por um preço aviltante outra máquina. Dólar alto, recessão acentuada em vista. Levou o novo computador para formatação, e o velho para casa. Ligou o velho por curiosidade, para ver que nível de ruído da origem do universo estaria aparecendo em sua tela fantasmal, e lá estavam, os arquivos restaurados, as fotos, os 180 cds do Mozart pela Phillips que levara uma semana toda para baixar e não fizera back-up, a discografia do Elvis Costello, as inúmeras páginas de Panorama 17 em várias variações de preguiça e desespero criativo, as primeiras 50 páginas de teste do romance que estava escrevendo. Tudo lá, funcionando que era uma beleza. E o carnê da prestação do novo notebook no porta-luvas do carro. Ele pensa em duas alternativas: ou o negativismo estava acabando, ou passara para outro avatar mais intrincado, em que o que era pervertido era a confiança das relações pessoais. O que ele estragara era a índole do rapaz do conserto, que queria lhe fazer crer que a placa mãe do aparelho se fundira, para comprá-lo por uma bagatela. Volta ao programador e ele diz que o note novo veio com um defeito na tecla "M", que às vezes se afunda acionando uma infinidade de mmmmmms histéricos na tela. Claro que ele não sistematizara essa teoria da negatividade e não pensava sobre ela a um nível racional durante esses momentos, senão teria se sentado na cadeira de frente ao homem e começado a chorar, solicitando em desespero que lhe trouxessem um pai de santo. Ele pensara nisso bem depois, ao se sentar já com o note novo em mãos e escrever sobre o assunto_ o note que ele levara de volta à loja, sob a proteção um tanto frágil do Código do Consumidor que estabelece a troca imediata do produto com defeito por um novo, e que lhe disseram para ele ir usando o aparelho defeituoso até sexta-feira, quando trariam um novo de outra loja e o reporiam. (Não tendo a resolução para o problema ocorrido nessa linearidade insofrível: o gerente, um cara amável e solícito em todas as outras ocasiões que lidara com ele, fora atingido por sua radiação, se mostrando misógino quanto à legitimidade de que um computador recém retirado da loja estivesse mesmo avariado, ao que ele precisou recorrer à parte simiesca de sua personalidade ao invocar processo, polícia e a perda inexorável que a loja teria de um cliente com um histórico de 15 anos de compras. Isso tudo para, depois, em casa, a letra "M" seguir dali para a frente sem a menor mácula de imperfeição.)

Na porta do programador, ele encontra seu amigo Emerson, que acabava de pagar ao lado sua mensalidade da internet a rádio. É uma das raras, senão únicas ocasiões, em que ele tem a oportunidade de falar sobre assuntos elevados. Ao longo das semanas ele tem que se inteirar passivamente sobre a mesma trivialidade boçal sobre regras econômicas provincianas e modelos de carros, e sobre quem está ferrando quem em diversos graus de literariedade. Os assuntos falados nas rodas de seus conhecidos naquela cidade é o suprassumo do tédio e da imbecilidade consistente. Sua sorte é que ele tem essa veia palhaçal, quando percebe que um silêncio exagerado pode passar a imagem inadequada de sisudez, ele recorre ao histrionismo mais baixo. Com seu amigo Emerson, a tecla do diálogo é outra, uma eletricidade de temas possíveis alimentados durante a ausência um do outro faz com que muita coisa se perca da memória, que anteriormente ele tentara fazer exercícios mnemônicos para se lembrar quando o encontrasse. Tanto que, ao Emerson descer de sua velha bicicleta azul, eles ficarem um diante o outro na paradoxal atitude monossilábica dos que não tem nada a dizer. O músculo da interação entre eles vai relaxando e começam a aparecer as notícias culturais. Emerson acabou de ler o primeiro volume dos Karamázov, que ele recomendara; parece entusiasmado, tocado, enternecido. Muitas vezes ele se enraivecia pela aparente falta de emotividade de seu amigo por esses grandes livros. Dava vontade de dar-lhe um tapa imaginário na cara, ainda mais quando, diante um puta filme, ou um puta texto que ele lhe recomendava de determinado autor, e se preparava para desenrolar seu cordel de divagações, Emerson apenas lhe respondia: "Loco demais". O cara era o maior devorador de livros em um raio de dez mil quilômetros, e fazia questão de externar uma falsa idade mental espelhada pelos zumbis do segundo grau para quem dava aulas. Emerson costumava escrever textos de revolta primários contra o sistema, e afixava-os no mural da faculdade de história da cidade. Era uma emulação anacrônica e constrangedora de uma banda de rock nacional que ele gostava, e das tantas vezes em que Emerson lhe passava um desses textos, ele sentia as glândulas salivares encolherem abruptamente. Doía o pescoço. Ao menos ele não gosta de rimas, santo deus!, pensou. Em determinado momento em que a amizade entre os dois foi ficando mais intensa, e que ele viu que por um má interpretação inercial da intimidade por parte do amigo fazia com que tais textos fossem parar cada vez mais em suas mãos, ele escreveu em um dos textos no mural uma frase crítica. Falava sobre o infantiloidismo do texto, para que o autor variasse de assunto. Ele escreveu a frase com uma caneta tinteiro, olhando para os lados temeroso de ser flagrado, não só o teor como as circunstâncias do crime repetiam o descerebralismo plástico do amigo. Ele se arrependeu por ter feito tal coisa, pareceu uma traição. Os textos acabaram, nunca mais houve nenhum no mural. Talvez se ele tivesse tido a coragem de falar cara a cara, externasse o que era irritante na auto-limitação que o amigo se impunha, a crítica teria sido construtiva. Imaginou o amigo lendo, com choque, a frase, ao buscar a esposa na faculdade, coçar sua imensa barba marxiniana, e com puro desconsolo arrancar o texto e jogá-lo fora, julgando se trata de um outro adolescente que lhe respondia.

Emerson está bem mais loquaz já faz um tempo. Se esforça para falar em suas conversas. Chega a traçar longas e interessantes reflexões. Na calçada da avenida onde conversam, com borracharias, carroças, carros de som falando com estridência descomunal sobre a queima de estoque de uma loja de sapatos para o ano novo, seu amigo relembra a reflexão de Ivan Karamázov sobre sua incompreensão irada pela indiferença do Ente Superior quanto ao sofrimento infantil. O garotinho que acerta uma pedra em um dos galgos do amo, e o amo faz com que os cães destrocem o menino ao colocá-lo como presa da caçada. Isso tudo diante os olhos da mãe do menino. Lembra a nota de rodapé dizendo que tal fato ocorrera na verdade, na época de Dostoiévski, gerando uma comoção social de certa relevância violenta. Ele responde ao amigo lembrando de várias passagens em Guerra e paz, Memórias de um caçador e nos Karamázov, que prefiguram a sombra do massacre da revolução. Há uma cena impressionante de caçada em Guerra e paz em que o mujique caçador não se contem diante a imperícia do amo em abater o animal caçado, e inclusive se nega a cumprimentá-lo no final. Essas coisas que formam a figura premonitória maior em um tapete.

Depois passam a falar sobre a menina acidentada. Ele se surpreende um pouco ao ver o sofisticado cérebro do amigo em suas reviravoltas retóricas tentar dizer com sutileza que talvez houvesse certo determinismo por detrás da tragédia. O pai da menina impunha um regime de quase escravidão aos funcionários da lotérica; a usura era um sinal característico da família. O que ele aceitou sem muitas reservas foi o fato comprovado de que o pai dirigia em alta velocidade. Um sujeito atarefado mesmo em uma noite de domingo. Ele meio que concorda com as coisas que o amigo diz, por hábito do diálogo, o que talvez não ia tão de contra o que bem no fundo ele se permitia pensar. Ele fala então de VALIS, sobre a teoria de que o universo é irracional mas que foi invadido por uma luz de racionalidade. Nunca o termo irracional foi-lhe tão revelador. O ser humano cada vez mais brutalizado é a afirmação de que a luz tinha muito caminho pela frente. Isso faz a gente pensar, ele disse, retornando ao assunto da menina, no que fazemos para nós mesmos merecermos uma compensação cósmica.

No capítulo final de True detectives, o detetive Rust diz algo colhido de Dick, de que, enquanto esteve em coma, ele entrou na profundidade plana do universo, no escuro incomensurável, e quando estava lá ele pôde sentir a força do amor de sua filha morta por debaixo disso tudo, e como foi ruim voltar à vida, como ele queria ficar naquele amor acolhedor que o abrangia e o protegia. O universo era escuro e irracional, mas foi invadido pela luz. E a luz, ao contrário do que parecia, estava ganhando.

No primeiro volume de José e seus irmãos, Thomas Mann cria uma cosmogonia. O homem foi moldado no barro de sucessivas metamorfoses, e em determinado ponto, o espírito foi insuflado na carne.

A outra coisa que aconteceu foi que ele obteve um contato inesperado de sua primeira namorada, uma mulher que anos atrás ele cometera o ato incauto de fazer um comentário no blog que ela escrevia. Naquela ocasião, ele digitara o nome completo dela no buscador da internet, e se deparou com um blog em rosa, absolutamente desconcertante no anacronismo dos textos publicados, em que uma mulher beirando os 40 anos rememorava antigos prodígios vaidosos da juventude. E como ele fora seu primeiro namorado por 4 anos, ele acabou encontrando uma menção a ele em uma lembrança que o descrevia com os pudores comedidos de se o marido dela resolvesse algum dia averiguar aquelas leviandades. O rapaz intelectual que não dava bola para nenhuma outra e que ela conquistou com sua beleza e sua bravura feminil, ele reconheceu com constrangimento, ser ele. Ele digitou uma resposta, algo que dizia em poucas linhas que o rapaz tímido agora era um senhor bem casado, e publicou. Na mesma hora em que viu a frase grudada na tarja branca dos comentários para todo mundo ver, ele se arrependeu, embora aparentemente ninguém frequentava o blog. A intenção fora essa?, ele pensou, sentindo-se um tremendo estúpido, que as matronas eventuais que dividiam o gabinete de trabalho dela e que por ventura fossem convidadas a visitar o blog, as antigas amigas daquela garota que se lembravam do frágil magricela com 16 anos, pudessem saber por uma incompreensível vingança a elas dirigidas, que aquele garoto havia sobrevivido bem da adolescência? Ela retirou o comentário, mas todos os dias ele visitava o site e lia os textos precários que ela escrevia. Receitas de beleza, uma dicotomia em que vaticinava que as mulheres deveriam aceitar a necessidade biológica de seus maridos por sexo fora do casamento, e mais um bocado de besteira. Ela atingira seu objetivo: na superfície, não envelhecera, congelando-se na atmosfera das revistas Capricho que assinava nos anos em que namoravam. E pelas fotos, ela ainda continuava com 20 anos, os traços faciais tendo recebido uma espécie de bóson de Higgs nas escoras que as zonas de luz dos músculos recebiam de sombras bem recortadas nas concavidades das bochechas e do pescoço, que realçavam a magreza cultivada contra a tendência evolutiva de acúmulo de gorduras da espécie, e que só poderiam revelar a degradação natural que avançava quando se olhava as fotos maldosamente desconsiderando a estética de olhares fatais e viradas de rosto estudadamente surpresos. Um dia uma leitora apareceu na caixa de comentários. Ele foi ler detectando em si mesmo a emoção do fanzine diante uma reviravolta na vida de seu ídolo. Alguém que não assinava o nome escrevera um texto longo com uma ira afiada, matematicamente calculada para destruir todo o castelo de vento da dona do blog. Vociferava contra sua vaidade vazia, o ridículo de suas afirmações de programa de entrevistas, da estética alienada, e sobretudo de sua total submissão ao direito do macho de se impor em todos os sentidos sobre a mulher. Ele releu várias vezes a resposta isolada na frequência das micro-pulsações imperceptíveis da tela, sentindo algo misto a uma revanche por ver ali expresso todos os seus piores pensamentos sobre o blog, e uma pena por ela, em seu universo imutável em que preservara seu quarto rosa naquela fáscia artificial na internet, ter que ler aquilo, ter que ser confrontada com aquilo. Era uma mensagem de alguém que tinha muito mais proeminência que ela na escrita e que articulava argumentos de refutação que soavam como evidente covardia. Ela havia expresso desde o começo de seus textos que a escrita deles servia a espairecer sua mente do estudo intensivo para prestar um concurso público no fórum de Brasília, onde morava com seu marido empresário e seus dois filhos pré-adolescentes. Ele pensou que se a pessoa que respondera também estivesse estudando, se fosse alguém do convívio dela e estivesse de olho no mesmo concurso, ela não teria chance alguma. Ela apareceu no final da tarde, e manteve o comentário. No dia seguinte ela deu sua resposta, no mesmo estilo vaticinado de menina que é líder de torcida, mas com uma educação que revelava enfim o que a idade lhe trouxera. De incorreção, só levantou a suspeita de que talvez quem escrevera aquilo não fosse uma mulher. Daí em seguida, ela interrompeu o blog. Passados uns cinco meses, ele retornara ao blog e viu uma última notícia, dizendo que ela tinha atingido o propósito de passar em um concurso forense.

E uns dias atrás, ele reencontra, pela mesma curiosidade de bisbilhoteiro, outro blog dela, que ela acabara de abrir. Agora ela tem mais que 40 anos, e revela uma tristeza que em nada parece superior à ingenuidade que tinha. Ele sente um enternecimento poderoso em relação a ela. Não escrevia mais sobre seu marido, o atleta lutador de karatê que aparecia nas fotos com uma barriga tanquinho e uma sunga de boneco do Falco, com óculos escuros diante uma praia, ou aparecia ao lado dela, ela com vestidos talhados na mesma impressão de seriedade social que lembrava-se de ver na adolescente cujo desejo de ascensão social era taxativo, mas que nunca lhe caía bem, deixando-a como uma boneca quadradona bonita mas encontrada inadvertidamente nos estoque de lembranças de uma tia velha, e ele com sua barba por fazer de empresário aventureiro, ambos dentro de um avião indo para o sul. Agora ela não escreve sobre o quanto era divertido andar na garupa da moto que ele comprou para eles andarem nas imediações do lago, não fala sobre quanto ela é presença importante para o bom desempenho dos negócios do marido. Ele lê e entende pela metade, como é notório o tipo de visão cubista que se tem de antigos conhecidos através das redes sociais cibernéticas. Esses espaços, essa vaguidão, é muito mais expressivo para ele, acostumado com esse conhecimento subliminar; ele é como aqueles labradores que detectam a depressão no amplo campo de incompreensão verbal entre duas espécies simbióticas ao sentir o cheiro da exanguidade que vem dos joelhos da dona. Pode ser tudo impressão, mas os indícios vão se casando em uma premonição reversa, em que o adivinhado vem do passado. Em seu blog anterior ela nem sequer escrevera sobre o suicídio de seu irmão, apenas dissera que sentia muita saudade, e reproduzira a letra de uma canção popular. O irmão se matara porque também era-lhe taxativo desde a infância a ascensão financeira, e no meio do caminho vertical seus gados e seu universo de chapéu de cowboy, caminhonetas e cerveja ruíram. Agora, no blog novo, ela escreve novamente para ninguém_ para ele_, sobre o quanto sofrera, o quanto tudo era uma enorme perda de tempo. Ele não se expressava nessas palavras; era bem outra coisa; falava sobre modelos de vestidos, o correto e o incorreto para se usar; falava de uma apresentadora da tv pública. Mas o labrador identificava a obsolescência e a perda da fé naquele imobiliário não mais irrepreensível. Ele se lembrou de um antigo filme que assistira em sua juventude de madrugada na tv, As sete faces do Dr. Lao. Uma mulher entra na tenda do dr. Lao, este utilizando a sua face de velho cego que prevê o futuro, e essa mulher, desconsoladoramente fútil e burguesa em seu vestido rosa e sua cara de empáfia, pergunta ao velho o que lhe espera o futuro, se muita riqueza e felicidade. O velho, com sua cara devastada pelos furos dos olhos, que tem algo de Rembrandt e demônio, diz à mulher que a única coisa que ela preservará do agora é sua empáfia e sua frieza em relação às outras pessoas, e lhe mostra a paulatina decomposição que a acompanhará em sua longa vida solitária até o envelhecimento e a sepultura. A mulher abandona a tenda aos prantos e correndo. Não que ela, sua antiga namorada, seja como a mulher, mas é como se ela houvesse tido a lucidez da farsa que era seus propósitos e sua vida bem arrumada, com suas concepções nunca refutadas em nenhum momento daqueles 40 anos, concepções implantadas em sua cabeça pela mãe misógina que havia vampirizado o marido, seu pai, até que ele morrera de câncer em um leito de hospital no começo dos anos 90. (Ele se recordava disso, de como ela chorara em seu ombro e ele, querendo consolá-la, disse que seu pai havia sido uma pessoa admirável, ao que ela respondera que ele nunca teve nada de admirável. E ele recordou de única foto que vira do pobre homem, aos vinte e poucos anos, na pose incompreensível para o mundo eternamente impermeável a seu calado direito de também ter ilusões da juventude, levemente encurvado para a frente com um mão como tapa-olho, uma truncada inspiração dos filmes de pirata que fracassava diante seu terninho de incipiente funcionário de banco, de olho no que o futuro lhe reservava, e mesmo nesse único demonstrativo de seu recolhimento havia o referencial em torno da megera com quem se casara, pois a foto fora-lhe apresentada como "olha só como papai era assim que se apaixonara pela mamãe". O futuro fora de uma vida insossa em um banco que lhe explorara até a medula, de uma família que lhe massacrara sem nunca lhe dar direito de voz, da única forma de evasão que conseguia vinda do tabagismo compulsivo, que lhe matara junto a todas essas primeiras coisas.)

                                                                            II

Como é a lógica desses relacionamentos pautados pela descoberta sexual e a insegurança da adolescência, o namoro dos dois acabou na branda forma trágica da vaidade ferida. A vaidade dele, que depois de 4 anos da acomodação em tê-la de prontidão para aceitar todas as suas grandiloquências de macho jovem à procura de sustentação heroica no mundo, ela teve aquele amadurecimento puramente feminil em sua tecnicidade de passar a enxergar esse mundo sem mais os amparos de algo que não fosse o mais lúcido pragmatismo. Algo que fora fomentado lentamente às custas dos desmandos sofridos na relação por esses 4 anos inglórios de aprendizado sobre a natureza frágil revertida para o desespero raivoso do adolescente masculino, e que só conservava a aparência de que houvesse brotado nela do dia para a noite. A lembrança nele, já passado agora dos 40 anos, ainda era latente, da tarde em que ela o escorraçou de sua casa e que ele viu nela a primeira versão daquilo que veria em uma série de mulheres que ele teria pela frente, a terrível perda do eufemismo quanto ao valor dele, a inexorável visão radioscópica de toda sua miséria tiranizadora. Soube no instante em que a coisa apareceu no rosto dela que ele estava extirpado em estado definitivo de sua vida. Ela não só não mais nutria o mínimo amor por ele, como tinha uma perene certeza de que o que houve entre eles estava longe de ser amor, mesmo o amor passível do aprimoramento social que ela acalentava em seus propósitos agora mais deterministas; aliás, ele viu nela a verdade de que se ele morresse assim que dobrasse a esquina, para ela pouco importaria. Saiu da casa com uma roupagem espiritual de um mendigo que perde sua deixa para passar a noite no último albergue da cidade, e dobrando a esquina não chegou a morrer para provar a consonância daquela lógica terrível sobre o coração das mulheres, algo que encolhido em seus ombros pouco protetores jamais achava merecedor de descobrir naquela altura da sua juventude, mas o que lhe aconteceu equivaleu em humilhação à morte, pois torceu o pé em um desnível da calçada. A torção foi tão forte que o pé inchou de imediato, e foi mancando sentindo dores lancinantes até sua casa, Sua mãe teve que chamar um tio para levá-lo ao hospital, pois seu tornozelo parecia uma batata-doce ultra-turbinada com os mais descarados agrotóxicos geneticamente modificadores. Ele passou o primeiro dos três meses de descontaminação da rotina de ter ela à seu bel prazer ao alcance de um telefonema, com o pé engessado e de cama, pois apesar da indiferença total de sua mãe quanto à sua previsão de morte ele tinha a certeza de que vivia seus últimos dias. Algo iria acontecer, algo indefinível a não ser pela áurea factível de que seria catalizado pela imagem de frieza dela que não lhe daria a importância de entrar pela porta de seu quarto e executar o homicídio, mas cambiaria o mal por zonas aéreas mais sutis. Ele descobriu ao final daqueles três meses, em que a lembrança dela desapareceu até um nível inofensivo de enquadro estatístico pessoal, que a maldição do homem é levar um tempo infinitamente superior ao da mulher para descobrir sobre a efemeridade dessa ridicularia inventada como amor, que elas descobrem isso no ponto ideal em que a cumplicidade no relacionamento extrapola o limite do inercialmente aceitável, e descobrem isso com a certeza concisa de uma visão mais fundamentada no mercado financeiro de um casamento futuro do que do baixo revanche contra o tempo perdido com aquele cônjuge obsoleto e incompleto, onde enxergam o conforto doméstico e a real proteção de um homem maduro para exercerem seus destinos de mães plenas. Por isso ela o esqueceu limpidamente naquela tarde, sem tempo para ódios e rancores. Enquanto os homens trafegam pela lâmina imaginária da eterna adaga romântica dos livros de aventura que moldaram seu espírito pueril eternamente preso a ilusões, e sofrem por três meses as agruras do pior inferno da abstinência, quando não se matam ou cometem as maiores barbaridades. Três meses, ele computava com surpresa; só esperar três meses e temos uma reativação da harmonia judiciária social, e foi-se sua vontade de invadir a casa dela e fazê-la de refém, e em consequência ter coragem de se matar diante o certo olhar dela da estatura de sua descomunal inconveniência.

Dois anos do rompimento se passaram e ela voltou a procurá-lo. Na mesma cama de casal da mãe dele, em um final de semana em que ele assegurou que estaria sozinho em casa, ela se despiu, sem aceitar um beijo e numa nova impressionante demonstração de funcionalismo sem palavras irrelevantes. e montou nele como o diplomamento definitivo de que era a sua forma agora piedosa de cumprir o assassinato que ele esperara com fervor naqueles três meses. Piedosa porque tendo se passado tanto tempo, isso não iria prejudicar mais ninguém, nem seu noivo que ele descobriria anos depois que ela tinha na ocasião e que por suas contas regressivas soube que se casaria alguns meses depois, pois se tratava de um expurgo de algum resquício trivial mas que precisava daquele sacrifício para não ganhar tamanhos inesperados no futuro. Quando terminou, ele perguntou se fariam mais dali para frente, perguntou por coqueteria pois sabia que não precisariam mais daquilo, e ela respondeu que só tornariam a fazer quando ela quisesse. E agora, ele intuiu essa mensagem, quase vinte anos depois, lendo o blog dela, de que aquela seria a hora de fazerem aquilo de novo, bastava que ele lhe mandasse um e-mail. Ele tinha certeza de que ela lhe mandara uma mensagem no mesmo grau aéreo de ninfa racionalizada desprovida de vaguidão sobre eles que ela passou a ser quando o extinguira, agora pelo ambiente cibernético que eles jamais imaginariam que existiria e poderia algum dia facilitar aquela sutileza de uma nova experiência sobre o desejo. Ele ficou dias imaginando o reencontro. Na ordem impecável dela, claro que ela não iria querer que ele fosse à Brasília. Seria na capital, no antigo hotel decadente do centro em que frequentavam no acirrado atendimento à libido exagerada daqueles anos que não respeitava nem o calor massacrante das segundas-feiras, um hotel que vai ver ainda era comandado pela mulher lésbica que toda vez fazia um elogio mais que cerimonial da beleza dela. Cada um em seu carro, ou talvez ela quisesse repetir as circunstâncias de ser ela a sempre buscá-lo no carro do pai, em algum lugar. Subiriam pelo elevador hollywoodiano de portas sanfonadas, que sempre o fazia lembrar de que era um ambiente ideal para um assassinato noir, e iriam para o mesmo quarto que a lésbica lhes reservava, o que o fazia imaginar que ali houvesse alguma câmera escondida e a gorda mulher gravasse as cenas da nudez dela e dos intensos entremeios corporais dos dois para assistir reservadamente mais tarde. Esse era apenas o mobiliário da cena, o que menos importava. O que ele mais tentava ver era como estariam um para o outro, a que exponencial chegaria o espanto de se verem no interstício súbito de ter se passado duas décadas sem que algum dos dois tivesse se visto nem erraticamente. Pelas fotos ela estava ainda bonita, mas ele não desconsiderava o uso ostensivo de óculos escuros e acúmulos estudados de adornos dela ao aparecer nessas fotos como um amaneiramento da realidade sob uma luz não previamente controlada. Em uma das fotos ele detectou um cansaço da pele, um detalhe praticamente escondido que talvez tivesse sido percebido por ela, mas que ela tenha aceito como uma introdução digna para que os olhares mais atentos já antecipassem sobre o que a técnica não podia acobertar sem artificialismo. E como ela o veria? Não sentia a mínima preocupação sobre isso_ mesmo se tudo fosse além do simplesmente teórico, coisa que enfim jamais aconteceria_, mas sabia que se alguma coisa pudesse ofender a sua já estoica vaidade, seria se ele recaísse, por instinto ou pelas armadilhas da falta de apreço real pelas situações que era algo costumeiro nele, naquela fragilidade em busca de refúgio de seus vinte anos. Se a mulher-concha, o símbolo valquiriano que ele inadvertidamente esperava que surgisse para cantar a sua predisponência à glória naquela época, retornasse como sabia que retornam em drogados curados já há muitos anos os sintomas de suas mais vigorosas viagens lisérgicas. E ele percebesse através disso que ainda não conhecia nada sobre si mesmo; que imenso desamparo seria naquele quarto de hotel vagabundo, após o coito_ que não teria, talvez, essa sinonímia tão cartorial com fins de corrigir qualquer ato indesejável de fuga para denominações que quisesse fazer uma ponte de conexão para aqueles paroxismos perigosos do sexo que eles tinham na época do amor_ ele descobrir capaz de emular o vício postural de se encolher sobre as axilas dela, ou passar a falar algumas daquelas tolices que antes eram toleradas por terem um funil de tempo a ser contado onde as possibilidades mais absurdas poderiam ainda evadir-se da gravidade de fundo. Ele não saberia o que fazer depois que saísse dali e reativasse sua vida normal, caso sucumbisse nesse deslize. Um ritual que se prestaria a quê? Nada disso seria pelo sexo, pelo culto aos anos em que tiveram o sexo de forma mais visceral que ele entenderia ser possível na vida, e somente para alguns privilegiados, e que depois, ele sabia, por mais que se obtivessem a aproximação cada um por si em seus outros relacionamentos, jamais seria o mesmo. Não seria por isso. Seria pelo quê? Haveria, afinal, uma última descoberta a ser feita através do sexo? Seria esse o ponto ao qual os levariam um aprimoramento tardio de uma revelação que eles se deixavam ter pela presciência de que seria algo arrebatador acima do que eles tiveram naqueles anos de juventude? Algo não fluvial, não enzimático, não febril, mas um conhecimento apto para suas idades, perfeitamente encaixável na circunstância complexamente vetorial de tudo que aprenderam em suas vidas de zelosos pais e cidadãos dessensibilizados da antiga leviana loucura. Serviria para confirmar que estavam certos, um ato sexual para terminar com um sorriso de sabedoria e uma despedida terna dessa vez para sempre, conscientes definitivos de que haviam sim encontrado o verdadeiro amor racional nos braços de outros, que cada um comprovava que o outro havia sido um canal onde o lodaçal do imaginário da traição nada tinha a ver com a plenitude tranquila obtida.


Ele havia tido um sonho com ela, há tempos, há muito e muito tempo. Se havia algo que ele tinha certeza sobre seus relacionamentos é que não a amava, nunca a amara, e não guardava nenhum rancor ou vergonha dela. Daí o estranhismo desse sonho. Se ele fosse atender às tantas especulações levantadas por Dick, não se tratara de um sonho, mas de uma percepção de uma realidade paralela em que havia um outro Charlles e uma outra Lorena. Às vezes ele chegava a simular acreditar nisso, principalmente porque ele não conseguia definir quando havia sido acometido pelo sonho, e nem quanto tempo ele durara. Simplesmente um dia acordou com a lembrança pormenorizada em vários detalhes de que ele e ela voltaram a namorar quando ambos já tinham mais de trinta anos, quase beirando os quarenta. Depois que o pai dela morrera, depois que ele se separara de uma outra mulher, depois que ela se separara do marido, subitamente, eles voltaram a se encontrar e, num mundo alternativo outonal, em que as árvores da rua da casa dela pareciam mais fractais em seu dourado enferrujado de velhas bijuterias circadianas, e os troncos respiravam com pulmões centenários cansados, ele ia buscá-la. Era tudo muito triste e calado, mas eles ficaram juntos. Ele sucumbira ao desejo dela de ter uma vida de casada com um homem distinto, aceitando conquistar a distinção às custas de tudo, e ela aceitara em troca a necessidade dele que não fora totalmente desfeita nos três meses e pelo inchaço do tornozelo. Ele procurava se lembrar bem, situar graficamente, o momento naquela realidade paralela, em que morreu em um leito de hospital, entubado e asfixiado pela própria incapacidade de respirar um minuto a mais nesse mundo em que ele fora conquistando o direito de pertencer, tendo atendido a todas a genuflexões exigidas que isso lhe custara.

                                                                             III

Na parte correspondente ao estudo da paranoia de Daniel Schreber em Massa e poder, Canetti mostra que Schreber sabia que estava louco para todos os parâmetros sociais, mesmo na fase sem retorno em que ele passou a viver inteiramente em seu delírio. A cosmogonia criada pela mente de Schreber é um dos mais assustadores e opressivos casos clínicos clássicos, uma espécie de marco fundador da psiquiatria, e o estudo de Canetti é tanto mais interessante do que o estudo famoso escrito por Freud, pois Canetti, como é sabido, era totalmente independente da ortodoxia da psicanálise, o que faz com que sua abordagem tenha uma certa liberdade esotérica. Schreber é um desses paranoicos que fazem com que aquele que tem contato com sua história sinta o temor de ser contagiado. A diferença entre a paranoia de Schreber com a paranoia de Philip K. Dick, além do defeito congênito de que foi uma causa possível no caso de Schreber, e o abuso das drogas lisérgicas associado a uma natural imaginação hiper-atrofiada no caso de Dick, é que o Dick escritor sabe se situar fora de sua personalidade delirante, enquanto o escritor Schreber é apenas um jornalista que narra suas muitas visões, simulando apenas uma fraca imparcialidade. Schreber conta sobre os raios que Deus envia por todo o universo e vem todos se convergir nele, com uma minuciosidade inquietante que extravasa a sua excelente educação jurista e sua exímia erudição. Não tem como o leitor se sentir confortável em um discurso que aos poucos perde sua preocupação pela forma dialética de apresentar pontos de vista antagônicos, e se torna um labirinto onde no centro se posta a figura monádica da prepotência pelo poder de seu autor. Em determinado momento, na fase irreversível de sua loucura, Schreber se considera a "noiva de Deus", e evangeliza que o sentido de todos os bilhões de anos do universo tem como propósito o cortejamento de Deus pelo espírito do ente encarnado chamado Daniel Schreber. Esse namoro, essa dança de acasalamento trabalhosa do Ser Divino pela noiva Schreber, confeccionou uma realidade simulada, contra a qual Schreber se coloca em defesa, em que as pessoas, os prédios da cidadezinha alemã onde ele vive, e tudo que sempre o cercou em seus anos de vida, são disfarces e marionetes de Deus, artifícios sem vida e mecânicos cujo intuito é tomar Schreder nos braços de seu noivo plenipotenciário. Uma imagem que fica na mente do leitor é do Schreber absolutamente consumido, já fora do resgate do mundo, trancado em um quarto-cela de uma cara instituição psiquiátrica, agachado na cama, a única peça de um ambiente controlado para não o ferir, os olhos arregalados vendo infinitos fios de luz se conectando parasitariamente em seu corpo.

VALIS pouco tem a ver com Memórias de um doente dos nervos. Philip K. Dick tem uma prancha de salvamento que raramente se vê em outros paranoicos: um senso de humor paradoxalmente iconoclasta para alguém que julgava ser uma das poucas pessoas com quem Deus conversava. Há muitas passagens em VALIS de pura dissuasão simpática, nas cenas de conversas dos amigos malucos, que lembram os descontraídos diálogos de V, o romance de Pynchon. Aliás, a aproximação entre Dick e Pynchon é uma constante em VALIS (e no restante da bibliografia de Dick, pelo que ele vem constatando em leitura compulsiva). O que o leitor astuto percebe é que talvez, na poesia altiva e no anedotário típico dos romances de estrada americanos, VALIS tenha uma demência legítima escondida pelo amplo domínio da graça da narrativa de seu autor. Talvez Dick seja tão genial que ele consiga fazer a ponte entre o que tem que fazer, ou seja, um romance apesar de tudo bem digerível e cumprindo sua função de entretenimento, e ao mesmo tempo um testamento sério em que emite uma mensagem transcendente; o que faz com que o leitor pense qual desses perfis da obra ele tem que considerar realmente. É como se Dick estivesse dizendo: a graça externa da narrativa é para provocar riso e divertir, mas sua profundidade é para fazer o leitor refletir na cama, à noite. Pois é isso que se tem: VALIS fica muito tempo na cabeça do leitor. VALIS propõe questões que se fazem imprescindíveis, que saem do subconsciente aturdido pela rotina do conhecimento aceito e emplastado do leitor e se colocam no primeiro plano. Aqui Dick perpetra a mais ousada ambição do escritor: transformar o imaginário em algo tão convincente quanto a realidade, convencendo o suficiente para que passe a não ter importância onde um termina e a outra começa. De modos que aceitar que tudo seja imaginação de Dick, ou que tudo seja real, passa a não ter a menor relevância.

Ao contrário de Schreber, a preocupação por tomar a percepção por todos os ângulos possíveis é um dever para Dick. Tanto que ele se exonera de ser o personagem principal e cria um alter-ego chamado Horselover Fat, no começo do livro fazendo um interessante jogo de desfocamento entre Dick e Fat para avalizar sua honestidade quanto ao que ele mesmo investiga sobre as características de um e outro. Dick também é um personagem, o personagem narrador, que olha a Fat com misto de ternura, preocupação, descrença. É um belo recurso, um recurso muito humano e tocante: Dick em nenhum momento age com prepotência; sua paranoia, considerando bem por baixo esse diagnóstico limitante, em nada se aproxima das necessidades de poder de Schreber, o que em fundamento clínico já põe por terra que seja paranoia. Sua visão sobre si mesmo (tanto sobre Fat quanto sobre o personagem Dick) é revestida de humildade, ele não se julga Deus, nem mesmo dá por completo que tenha recebido algo legítimo de Deus_ no diálogo inesquecível que Fat mantêm na incrível cena final do livro, alguém lhe diz que ele pode acreditar no que escuta pois a mensagem foi enviada exclusivamente para ele, ao que Fat responde: se foi só para mim, então não é verdadeira. Dick aqui é o mais preparado para receber uma mensagem do sublime no campo da literatura desde Tolstói, e ele tem o ceticismo de Tolstói. Ambos, Tolstói e Dick, são os místicos do existencialismo, os que, por mais que são seduzidos para a propensão da Verdade revelada (principalmente no caso de Dick), professam a máxima de Pascal de que sua religião é a da dúvida sincera. Um dos generosos assombros de VALIS é que, depois de todo road movie místico, no final há uma forte inclinação de Dick para a conclusão de que talvez tudo tenha sido um estelionato tecnológico, uma pura ação humana (mais uma estratégia de um grande narrador após o leitor se sentir convencido?).

Dick é tão sagaz que ele se comunica com o cliniquês clichezístico da psiquiatria ao revigorar a palavra anamnese. Um termo sem graça e banal que equivale a um questionário de sintomas do doente, ele purifica ao trazer de volta sua etimologia, e a conceitua como "supressão do esquecimento". O que ele vê que ocorreu com Fat foi uma supressão de sua capacidade de esquecer. Ele repete as portas da percepção de Blake ("quando o homem conseguir abrir as portas da percepção, verá as coisas como realmente são: infinitas"), e o escritor de ficção científica que é funde a origem das religiões, com seus usos primitivos de psicotrópicos, com a ciência que diz que o cérebro é o mais potente catalizador não usado do universo.

Em um dos filmes de Jornada nas Estrelas, os astronautas da Entreprise chegam à borda do universo e encontram uma entidade que diz ser Deus. Aos poucos a voz de Deus vai demonstrando uma melifluidade que fica um tanto mais terrível por a tripulação da Entreprise se ver na dúvida de se a manifestação de Deus não teria mesmo aquela superior indiferença, aquela plenipotência absoluta que revela em contraste quanto o ser humano é minúsculo. O paradoxo do crente que perde a fé ao se confrontar com a prova de que tudo em que ele acredita é verdade (frase de VALIS). Em VALIS o leitor é levado ao que ele espera mas duvidava que o autor fosse capaz de oferecer com tamanha mestria: uma cena com a mesma intensidade e estupefação de Star Treck. Dick cumpre seu papel: o que é verdade afinal de contas? Quem é o louco?

Corpos divinos, de Guillermo Cabrera Infante



Não há muita coisa que se possa completar sobre Guillermo Cabrera Infante que seu amigo e parceiro de jantares literários íntimos, Javier Marías, não tenha dito. Que GCI é o escritor mais livre do século XX, o próprio paradoxo de ser exilado de uma das últimas tiranias ocidentais evidencia isso para seus leitores; que GCI é o herdeiro literário mais fiel de Laurence Sterne, as deliciosas e impagáveis digressões de seus livros comprovam; que ele é o narrador nato mais talentoso das letras latino-americanas qualquer um pode ver em fração de segundos, bastando para tal abrir na primeira página de um de seus livros.

Na memória pessoal, Infante foi um de meus fetiches inacessíveis. Quando adolescente, vi ou li em algum lugar o Caetano Veloso respondendo a um repórter que preferia Infante a Garcia Marquez. Como eu achava que Marquez era tudo que havia de melhor na ficção, só tive paz quando, após economias severas e buscas que esbarravam na desesperança pelos sebos, pude adquirir o que para sempre pareceu a mim esgotado o Três Tristes Tigres, romance estandarte de Infante. Li-o em estado de febre, assombrado diante a constatação taxativa de que no mundo dos escritores pudesse haver dois que fossem tão opostos em tudo quanto esse cubano e o autor colombiano. O que em Marquez era ordem e admissão imediata no classicismo, em Infante era anarquismo e traquinagem, descomedimento e irreverência total. Infante me apresentou, em minha imaturidade sedenta, aos escritores que atiram para todos os lados, que não respeitam nada, para os quais nada é sagrado, a não ser a felicidade plena e impagável de darem total liberdade para seus talentos. Foi uma paixão irrevogável. Li Três Tristes Tigres duas vezes seguidas, sempre com a sensação de que assistia a algum crime genial, proibido por todas as formas de ortodoxia. Havia sexo desmedido, proezas verbais incontroláveis, virtuose embriagada, e aquela ternura incondizível das mais eloquentes e líricas memórias infantis. Infante era o maior escritor latino-americano, eu cheguei à conclusão naquela época. Cortázar, que era quem mais se aproximava dele, perto dele era um rapazinho comportado, pudico, que só simulava aquela boêmica loucura capciosa para a qual seu formalismo congênito não tinha coragem. Infante na verdade estava sozinho nas letras caribenhas: seus irmãos moravam distante, talvez por isso a sua procura pelo exílio em Londres; seus irmãos eram Nabokov, Anthony Burguess, Kerouac, Pynchon, Joyce.

Depois li, também após economias colossais e procuras ainda mais desabonadoras pelos sebos, esta que tenho por sua maior obra, Havana para um infante defunto. Um livro que foi publicado pela Companhia das Letras, se esgotou numa rapidez atordoante, e nunca mais foi re-publicado no Brasil, o que evidencia o quanto Infante ainda sofre, nesse andar do século tecnológico, a pecha anacrônica de escritor maldito_ evidencia o quanto Roberto Bolaño estava certo ao apontar as causas perpétuas de nosso subdesenvolvimento cultural. Esse misto de romance, memórias, e excertos soltos de segredos de gaveta, é uma das cinco maiores coisas que aconteceram nas Américas no campo da escrita. Tem tudo o que um grande romance pode oferecer, desde uma visão profunda e modificada das coisas até aquele reino na infância-juventude, feito da relembrança artesanal de salas de cinema que só não foram apagadas da nostalgia memorial e dos tantos ritos de passagem que tornam a Havana de Cabrera Infante tão imortal quanto a Dublin de Joyce_ ou a Macondo de seu arqui-inimigo.

Mas aconteceu um abalo na força. Esse ano a Companhia das Letras publicou Corpos Divinos, um romance póstumo lançado em 2010 que tem tudo para ser uma obra-prima de mesma envergadura que Havana para um infante defunto. Li-o semana passada quase sem conseguir desprendê-lo dos olhos. Senti a mesma energia inesgotável daquele seu outro grande romance. São mais de 600 páginas que tem uma fluidez incorrigível e deliciosa. Ali estão os mesmos eternos temas de Infante: sua juventude na Cuba bucólica carregada de fetiches cinematográficos e eróticos, sua proeza verbal generosa e eternamente jovem e inesgotável, sua visão política libertária e iconoclasta, sua angustiante nostalgia, seu humor que vira tudo de pernas para o ar. Sim, não há o que complementar ao que disse Marías em algumas crônicas dedicadas a Infante (e a partes do seu Negro dorso do tempo, que trata dos jantares na casa de Infante em Londres): Infante é o mais livre dos escritores latino-americanos, e por vezes demonstra a vertigem de estar situado em um local independente bem acima deles.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

O sorriso do deslocamento




Amanhã meus amigos irão embora. Essa é uma das frases que eu gostaria de ver apenas na dor circunscrita das letras, essa dor que pode ser bonita, essa dor espiritual. Contudo, amanhã meus amigos irão embora de verdade. Tudo o que se relaciona às suas partidas é colossalmente verdadeiro. Passamos ontem de frente à casa deles e vimos os restos das coisas que o caminhão não levou, papéis, talvez um antigo tapete que, se tudo estivesse bem, nem seria deixado de lado, mas como tudo vai mal, o que é um tapete? E um tapete tem tantas lembranças, e me parece tão violento o fato deles terem que deixá-lo. E como é desumano, como é uma dança com pares errados e com uma música sem melodia, eles terem vindo aqui em casa no sábado para atenderem ao convite final do almoço. Como eles chegaram atrasados e eu já não tinha mais o conforto de ficar com raiva por essa falta de delicadeza, porque eles se atrasaram por estarem embalando os móveis. Como fiquei com vontade de amuar a cara e dar os indícios manhosos de ter sido insultado_ os chamo para o almoço ao meio-dia e eles vem uma hora e meia depois. Mas diante essa prova visceral e incontestável de suas tristezas, nem esse tipo de carinho reverso se é mais possível. Eles se sentam à mesa, com o sorriso sem naturalidade da deportação; seu filho brinca não mais com a saúde inviolável do escolhido. Meu deus, como toda a existência soa errada quando uma criança já não tem mais a fé sólida e inquebrantável de ser o escolhido. Como me doía profundo ver o filho deles se deitar no nosso sofá, sem vontade de brincar, sem vontade de falar, sem vontade... Como eu daria tudo para vê-lo com sua tirania intacta dos que se julgam imortais. Mas nem chorar ele queria. Só o cansaço. Minha filha o atiçando a ir escorregar no escorregador do quintal, e ele em seu conhecimento angustiosamente pleno do sofrimento, essa forma absurdamente triste que as crianças tem de entenderem a premonição e se calarem tornando-a ainda mais inevitável. Preocupava-me muito vê-lo deitado no sofá, assistindo ao desenho pela televisão que ele não mais assistiria, talvez, na casa que iriam morar a três mil quilômetros. Talvez na casa da sogra desse meu amigo, não haja tv à cabo. Enquanto o Sérgio falava comigo, a Luanda falava com a Dani, eu não conseguia desprender os olhos do menino. Perderam o emprego. Várias lojas na minha cidade fecharam. A massa dos desalojados. Mesmo minha irmã, que eu tinha uma tranquila e ingênua convicção de que era uma Midas, colocou a sua parte na academia de pilates para alugar. Ela não fala mais em trocar o carro depois que pagar a última prestação. Hoje vou buscar a Júlia na escola, e lá estão eles, esse casal de amigos. A Luanda chorando. O Sérgio pede que a Júlia fique do lado do filho deles para que ele lhes tire uma foto. Pela primeira vez eu me vejo sendo severo com o menino: eu imponho com uma voz que tem mais um desamparado desespero do que raiva que ele sorria. Sorria Gabriel, vê se arreganha esses dentes meu camarada. Daí eu olho apreensivo para o Sérgio para ver se minha voz não saiu de uma forma peremptória demais, coisa que muitas vezes eu vejo em mim e me policio, e o quanto me arranca o coração ver a subserviência dele, dele e do menino que, em vez de se grilar e fechar a cara para mim, como em seus dias de imperador plenipotenciário ele faria, ele tenta sorrir, um sorriso cheio agora da mais abissal tristeza, o sorriso do deslocamento, da volta à aventura incômoda da estrada. Todas as crianças da sala deram adeus ao Gabriel, uma a uma, coisa que a Luanda não aguentou. Eu saio de lá levando quase sem ver a Júlia pela mão. Entramos no carros, ela e eu mudos. Me engano com a minha filosofia: a vida não é simples, como eu pude fingir isso. Deveria ser, mas há tantos empecilhos, tanta perícia para não se deixar em paz. Eles voltarão amanhã para Alagoas. Como a vida deveria ser simples. Como o segredo de tudo é brutalmente visível e nossos esforços de sempre é escondê-lo com gana, com apaixonada compulsão por infringir dor. Nenhuma família deveria ser imolada. Todo ser humano, em qualquer canto da Terra, deveria ser milimetricamente respeitado.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Burroughs e Brandão



Vê-se a diferença do poder da mídia livresca entre os EUA e o Brasil através da comparação de dois autores respectivos de cada país, ambos com o mesmo quilate. Falo de William Burroughs e Ignácio de Loyola Brandão. Para vários leitores cultuadores de Burroughs, ou mesmo vários leitores de prosa norte-americana, comparar Brandão a Burroughs é uma heresia. E por quê? Pelo simples fato de que Burroughs em seu país é visto como um revolucionário da língua escrita, um inventor anárquico, um autor que usa de seu cotidiano devasso no meio de drogas pesadas e de sexo homossexual para falar coisas sublimes. Não é exagero: Burroughs não só e visto assim por lá, como é tratado por gênio por aqui (vide um texto do Terrón, laudatório, que surgiu alhures no blog da Cia das letras). Mesmo gente como Ian McEwan disse que só soube como escrever quando assistiu uma palestra de Burroughs. Eu não gosto de Burroughs. Em minha definição de escritor, ele entra por uma questão pessoal de que eu, como qualquer outro, tenho os meus fetiches para alimentar. Burroughs é preguiçoso, trapaceiro da pior forma possível, leviano e, em um nível que destrói qualquer escritor sério, amoral. Tenho por base Petrônio, quando penso em Burroughs, o Petrônio que parte dos estudiosos de literatura romana julga não ser o autor verdadeiro de Satiricon por ter sido hedonista demais para arranjar tempo e concentração para escrever. Ler o ensaio que acompanha o recém lançado Almoço nu, pela Companhia das Letras, é constatar que esse livro só foi ajuntado e publicado por uma força enorme por parte de Allen Ginsberg e Jack Kerouac, isso porque Burroughs era incapaz de se concentrar e ter um fôlego mais extenso do que o de escrever cartas aos amigos. Quase todo livro é uma costura de cartas que Burroughs escreveu a Ginsberg. Nesta edição da Cia vem informado na capa ser a Edição Definitiva, o que quer dizer que tem adendos novos de coisas avulsas descobertas no espólio do autor. É uma colcha de retalhos, sem objetivo, sem coerência, absolutamente solta e inflada ao máximo para ter o diâmetro que os editores julgaram propício para um romance. Há fantasias aparentemente escritas durante viagens lisérgicas, constrangedoramente vazias, que, num primeiro momento, pretendem ao ensaísmo fabulesco de Robert Musil, mas que acabam resultando apenas em brincadeiras de um drogado que sabe bem manejar as letras_ mas prescinde do simbolismo legítimo. Um exemplo é o capítulo intitulado Benway, que, a meu ver, parte do propósito do excepcional Kakânia, mundo inventado por Musil para criticar acidamente a Áustria pré-guerra, mas a Anéxia criada por Burroughs serve apenas para uma série de piadinhas pretensamente surrealistas e cansativas, em que o autor mostra o virtuosismo sem propósito de sua imaginação.

Mas eu leio Burroughs. Qualquer coisa que saia dele por aqui eu leio. É o fetiche. A invenção mais importante dos EUA: o poderoso fetiche cultural americano. É ele que me fez perder uma hora e quarenta e oito minutos de meu tempo ontem à noite, com o filme Deadpool, uma imensa bobagem. Raramente eu assisto a essas porcarias, e não vou fazer aqui um panorama comparativo entre o nível precário da inteligência geral com esse tipo de ração insossa. Leio Burroughs porque sinto uma atração genuína pelo mundo que ele fala, o da devassidão, das cornijas suburbanas das casas arruinadas sob a chuva, das ruas povoadas de lixo sacudido pelo vento de uma quarta-feira irredencionista, das caras destruídas de mulheres tatuadas, de homens raquíticos que se escoram nas traves dentro do metrô com olhos em que o ódio se suplanta inadvertidamente por uma infinita angústia. Leio Burroughs avidamente: a Cia me enviou esse livro, que eu escolhi preterindo outros mais interessantes, e assim que me chegou deixei todos os outros e o devorei em 4 dias. Sonhei com ele. Tenho a sensação sólida de que ele me alimenta, aumenta ou poda as arestas das minhas credenciais mentais de expressão, sublinha com mais rigor (um rigor paradoxal) a liberdade de escrever. Se alguma coisa tranca em minha caneta por sobre a folha, a lembrança fresca de Burroughs oferece uma efetiva lubrificação.

Agora passo para Brandão: eu era um leitor fervoroso de Brandão, em meus 15 anos. Ele era cultuado pela turma de sedentos pela cultura de impacto e despertadora política a qual eu pertencia. Zero e Não verás país nenhum foram tão chocantes para mim quanto Kafka, com quem guarda influências e semelhanças. Nestes livros tudo era de ponta cabeça, incongruente, estranho, removedor de óticas normativas. São muito, mas muito melhores que qualquer coisa que Burroughs tenha escrito, e, o que lhes dá maior mérito, são livros politizados escritos em um dos ambientes mais negros da América Latina do século passado. Depois, contudo, não li mais Brandão. Cheguei a esquecer profundamente dele, mas sempre que o via, em entrevistas raras quando ele estava à frente da direção de uma revista, eu sentia minha imediata reverência, eu, como se diz, tirava meu chapéu para ele. Assim é também com outro escritor por quem tenho muito respeito: Marcelo Rubens Paiva. Feliz ano velho e Blecaute me estontearam. Direto flagro em meus pensamentos corriqueiros a influência desses dois livros: a explosão da torre da rede Globo nesse último, as frases escritas nos muros do primeiro ("Rendam-se terráqueos", e essa que me aproximou dos Beatles, "Lucy in the sky with diamonds"). Comprei o último romance que Paiva lançou, tido pela crítica mais dura como uma obra-prima, mas ainda não o li. Paiva seria quem? Paul Auster? Sei lá: Kerouac (por que não, Charlles?, só porque você respeita sobremaneira Kerouac?).

Vejam a capa de Almoço nu, que lindeza! Uma das mais belas da Cia. E vejam as de Brandão. Surpresa: fui pesquisar agora na Amazon, e vejo que as de Brandão são também muito bonita, ainda bem! Mas... e aqui vai outra vez um dos meus clichês: se o Brasil tivesse um imaginário cultural e uma mídia cultural poderosa, Brandão e Paiva seriam conhecidos no mundo inteiro. Assumo um certo reconhecimento de ser enganado, mas isso é a raiz de toda aquisição cultural. Conheço pessoas que acham Kafka um pé no saco, que acham Ulisses uma brincadeira de esnobes que mentem venerá-lo só para adquirirem certa proeminência nunca comprovada do gosto. O fetiche é importante e inseparável da cultura. 

Esses dias, assistindo ao programa Minha loja de discos, apresentado pelo canal Bis, cogitei dos caminhos que a cultura, em especial a literatura, esteja tomando graças à internet. Neste programa, aparece um sem número de novos músicos, absolutamente desconhecidos pelas mídias convencionais: seus discos são bem produzidos, com capas belíssimas (paisagens urbanas pitorescas fotografadas sob uma ótica sofisticada, rabiscos expressionistas, rostos em preto-e-branco). E o mais impressionante: o expressivo mercado que os abarca. Há estudos sobre eles, livros sobre eles, programas de rádio dedicados às suas músicas. Deixa a gente pensando em qual o sentido consumir apenas a música canônica nos trazida pela grande mídia_ ou pela mídia pequena longilínea no tempo que nos autoriza a boa música_, e não essa nova música que, no mais, tem todo o aporte inteligente e profundo do fetiche da outra. Me lembrei do Claudio Magris falando que na Itália profunda existem grandes escritores e poetas desconhecidos pelo mundo, mas interagidos em total cumplicidade entre seus consumidores cultos das aldeias e povoados italianos. 

quinta-feira, 9 de junho de 2016

The plastic people of the universe



Ano passado eu fiquei estarrecido com um pão de queijo de oito reais, em um aeroporto de Minas Gerais. Estávamos de viagem para a praia, com uma provisão de grana bastante satisfatória, economizada para passarmos bem o passeio, mas tanto eu quanto a Dani nos recusamos a sermos espoliados por esse insulto de preço. Havia uma fila enorme de pessoas para comprar na loja do pão de queijo. Um pão de queijo de tamanho normal, que todas as manhãs eu compro aqui por 70 centavos_ e vendido assim na terra do pão de queijo, por absurdos 8 reais. Gente encasacada, um homem com um olhar sonso de pensamentos com suas ocupações profissionais (julguei ser um advogado), e mulheres de óculos escuros e ares esnobes, diligentemente esperando a vez como se fosse a coisa mais normal do mundo. Comprando uma cesta de pães de queijo onde cada um era 8 reais.

Vejo nos facebooks dos intelectuais produtores de textões a regra sagrada de se fingir que se mora em um país europeu, ou um prosseguimento descansado economicamente dos EUA. Mete-se o pau com sofisticação, fala-se da crise, da violência, da política, mas todos, TODOS, respeitam a regra de jamais falarem sobre as condições personalíssimas da precariedade da qualidade de vida nesse país. Todos simulam cultura, vida mansa, sair na cidade com segurança, um país de preços condizentes com os salários. Quando falam de assassinatos e latrocínios, violência policial e sequestros, é com um ar de assepsia de que tais indelicadezas são coisas que acontecem com os outros, eles estão ali com o violino choroso para executar a trilha sonora do esclarecimento engrandecedor. Suas funções é pescar a mensagem moral da realidade que eles transformam em parábola. Mas a verdade é que todos estão na miséria, uma miséria bem regrada, bem apertada para não estrebuchar o excesso de gordura e fazê-los passar vergonha. O importante é evitar a todo custo o escândalo.

Meu salário é bom. Creio estar numa privilegiada zona B. Mas minha qualidade de vida despencaria se eu vivesse em uma capital. De dois em dois meses passo um fim de semana em Goiânia, e... valha-me Deus, que vida impossível. Se eu morasse ali estaria fodido. Eu sou um homem melindroso, cheio de manias consumistas particulares. Agora mesmo está no forno uma pizza de calabresa com pimentões amarelos e vermelhos. A última vez em que estive em Goiânia, assim num átimo, vi incinerados 180 reais de meu bolso com duas pizzas grandes da Pizza Hut. 180 reais, Jesus! Por um fast-food? Por aquela que é cosmicamente aceita insofismavelmente como a comida plástica mais barata do mundo. Da vez passada, comemos no Burger King, cada pedido 22 reais. 22 reais se compra um quilo do melhor filé mignon aqui na minha cidade. Minha mãe quando vem para cá pede para que eu encomende peças de carnes nobres para ela. Uma vez ela tirou uma foto de uma peça de picanha no walmart e me mandou: etiqueta com o preço de 190 reais.

Como é que se quer que um povo assim respire, seja pretenso à independência de pensar criticamente sobre si mesmo? Um povo que paga, como um colega meu de trabalho, 2.800 reais de imposto anual do carro, o mesmo carro que, aliás, no Chile custa 32 mil reais, mas que ele comprou na concessionária por 60 mil? E não há uma estrada que não seja de ruim a péssima em quase todo e estado de Goiás, tirando as pistas duplas construídas pelo atual governo e que estão para serem privatizadas?

Como se quer que um povo assim se respeite e seja respeitado? Os caras e as moças do face deveriam parar de fingir infantilmente que vivem em Amsterdã, que são adidos culturais ou embaixadores itinerantes cumprindo a missão benevolente de escreverem com classe sobre uma miséria alheia, que não os tocam. Parar de fingir que no Brasil neva e tem trens modernos com ar condicionado que transitam por campos verdejantes onde pastam singelas vaquinhas de leite. Ter uma sky, uma internet popular de 1 mega, ouvir seja qual for o herdeiro atual de Chet Baker e ler os romances descolados da Jennifer Egan, não nos faz imunes de nosso carma espiritual de sermos um povo explorado pela própria burrice. (Aliás, esses grandes intelectuais do face, na maioria, vivem na tristíssima cidade de São Paulo, na horrível e esfumaçada e esteticamente deplorável São Paulo, que recentemente uma revista reportou a notícia de que o custo de vida nela é bem mais caro que o de Paris.)

Adendo 1: interessante essa "politização" no cenário nacional. Independente de quem esteja por detrás da opinião expressa, se um artista plástico, um crítico de cinema, um cozinheiro de restaurante famoso, uma bailarina, todos em suas produções corriqueiras nas redes sociais tem de encorporarem uma consciência política, consciência essa revertida no limite de seus esforços em conselhos clichês e indignações "contra a corrupção" que não são mais que álibis para exercerem suas adesões ao humor ignóbil das piadinhas da internet e das palavras de ordem do senso comum. Tudo o que falam não passa do mais crasso lugar comum. Assim, vejo alguém que se intitula cineasta e crítico literário, apesar de até então eu nunca ter ouvido falar de um filme ou lido um texto sobre cinema dele, mas que é altamente popular no facebook, com posts que chegam a milhares de "curtidas". Recentemente, como é de regra entre esses intelectuais, ele se lançou numa briga pessoal contra um "blogueiro progressista", apenas pelo que ele achou ser um título de mau gosto empregado em um texto desse blogueiro; daí então começaram as ofensas, com centenas de seguidores do cineasta repetindo e aumentando os insultos contra esse blogueiro, pessoa aliás que muitos dos comentaristas admitiram nunca terem ouvido falar, mas que não os impediu de decretar um ódio genuíno contra ele. E depois, como também é de praxe previsível nesse tipo de comportamento cibernético de rebanho, o cineasta, cobrado por sua percepção de que a coisa necessitava de uma maior legitimidade, passa a acusar o blogueiro de ter usado um de seus textos sem pagar os direitos autorais, e aí a coisa vai. Como se copiar textos pela internet tivesse sido inventado naquele momento e como se um post publicado no faceboom fosse causa milionária de querela de tribunais. Outro facebookiniano, um autor de um calhamaço de crítica literária indigesta, nos moldes do mercado nacional de recentes títulos "polêmicos" contestadores de verdades instituídas da história e da ciência, respondeu à crítica que fez um dos comentaristas de sua página no face contra seu livro, que iria "comer o cu da sua mãe", crítica aliás, a feita pelo desafeto, bastante abalizada em diversas provas mostradas no momento que o autor do calhamaço não tem as mínimas condições para ser um escritor, devido seu péssimo manejo da gramática e sua capenga capacidade de concatenar as ideias e a estética no texto. Uma briga, para maior sublinhar a mediocridade do que rola nos "debates" de qualquer vertente neste país, instigada em nome das paixões do culto a esse guru como em todas as coisas nacionais histriônico ao extremo, chamado Olavo de Carvalho. Há vários outros intelectuais classe média facebookinianos, que a maré da efemeridade à enésima potência da internet está nesse exato momento relegando ao completo esquecimento, todos politizados e todos descolados na repetição das normas plastificadas do que se deve falar sobre a situação do país, e nenhum, repito, sequer mencionando que moram em apartamentos de quarto e sala, tomam sua cervejinha regrada duas vezes por semana no happy hour barato em que eles mesmos talvez tenha comprado um quadro em preto e branco de Deleuze ou seja lá quem, para dar-lhes o glamour masturbatório que eles cultivam em exatas medidas de inanição de auto-crítica em seus avatares cibernéticos; pegam ônibus ou atravessam o caos da miséria urbana brasileira dentro de seus carros populares chiques, financiados ou razão de empréstimos consignados em que eles alegam ter pago pelo veículo seus absurdos 35 mil reais, mas que na verdade é o dobro disso somadas todas as parcelas dos longos 5 anos de rabo preso com os juros bancários, e não, jamais deve-se mencionar isso, essa indigência nacional, deve-se sempre se esconder por detrás dessa valiosa capa metafísica que é a coisa para a qual eles são capazes de darem as vidas, essa obstinada maquiagem de que são seres de primeiro mundo exilados com sofisticação em um país falido, essa punhetagem de zé-ninguéns.

Adendo 2: na minha cidade, um supermercado resolveu promover uma revolução duvidosa. Aos olhos de todos, passou a vender sob a mais descarada sonegação. Não sei como conseguem, não sei o que isso vai dar, mas o pequeno espaço do prédio vive diariamente cheio de carrinhos lotados empurrados por clientes. Desde dois meses que nós aqui de casa deixamos o supermercado onde temos conta e passamos a fazer a compra do mês lá. Eles só aceitam dinheiro à vista, e não emitem nota fiscal. Dão uma folha impressa com todas as informações da compra. Nossa despesa de supermercado caiu em 40%. Há muito o que pensar sobre isso.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Kertész, mais uma vez




Mas eu acredito na escrita. Em nada mais, somente na escrita. O homem vive como um verme, mas escreve como se fosse para Deus. Houve um tempo em que se sabia desse segredo, hoje o esqueceram: o mundo é feito de cacos partidos, um caos escuro, sem nexo, sustentado apenas pela escrita. Se você tem uma ideia do mundo, se ainda não esqueceu tudo o que aconteceu, se chega a ter um mundo, ele foi criado pela escrita, e ela cria sem cessar a teia invisível que ata nossas vidas... (Imre Kertész, Liquidação, Companhia das letras)