domingo, 29 de outubro de 2017

Che, de Jon Lee Anderson


Não acredito em heróis. Nunca acreditei, nem quando tinha idade em que o culto a eles era perdoável. Enquanto alguns amigos da adolescência usavam camisetas com estampas de figuras iconizadas da política e da música, eu era rigorosamente sistemático em usar camisetas lisas, sem estampas (coisa que eu conservo até hoje). Eu tenho escritores e músicos que amo_ como William Faulkner, Hannah Arendt e Miles Davis_, pelo que eles produziram, mas não os cultuo pelas pessoas que foram. Ontem fui à fazenda de um amigo meu, um sujeito com o intelecto bastante desenvolvido e de muita cultura, e na despedida, quando ele me levou até o carro e viu o volume sobre o Che no banco do passageiro, perguntou como eu perdia tempo lendo um calhamaço de quase mil páginas sobre um assassino contumaz. Era provocação da parte dele, por isso eu ri e respondi com alguma piadinha ligeira. Admiração nada tem a ver com concordância: eu admiro o Che em alguns aspectos, mas não gostaria de tê-lo conhecido, e nem me simpatizo com ele. Quero entender o máximo sobre a América Latina e a leitura desse livro faz parte do propósito. Tenho outra biografia dele já faz uns 5 anos, a do Jorge Castañeda, mas o tom rançosamente poético me desmotivou da leitura. Jon Lee Anderson é um dos maiores jornalistas do mundo, sua análise é mais profunda e realista. Estou prestes a chegar à página 200_ ler usando um lápis para conduzir o foco dos olhos é imensamente proveitoso, atravesso páginas numa velocidade muito maior que a normal. Ainda estou no Che das viagens com La Poderosa, a motocicleta com a qual, na companhia de seu amigo Alberto Granado, atravessa parte da América Latina; o Che reflexo do direito de explorar as mucamas, empregadas semi-escravas, índias, negras e vindas de outras extrações mais baixas da sociedade, que trabalhavam nas casas da elite e eram estupradas pelos patriarcas e os filhos dos patriarcas. Em uma cena, reportada no livro baseado no testemunho de um dos amigos do Che, Guevara transa com uma mucama por cima da mesa, à frente da testemunha e pelas costas de sua tia, e depois retorna ao jantar como se nada tivesse acontecido. É repugnante. Alguns anos mais tarde, o biografado escreve um conto e entrega para seu pai, onde aparece a frase de Ibsen: "Educação é a capacidade de confrontar as situações criadas pela vida."

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